19/09/2012

Bisneto do primeiro dono da versão de O grito, de Edvard Munch, brasileiro quer resgatar a história da família


A MAIS VALIOSA A terceira versão  de O grito. Ela foi leiloada por US$ 120 milhões, um recorde  (Foto: AP)O quadro O grito, pintado em 1895 pelo expressionista norueguês Edvard Munch (1863-1944), se tornou, em maio deste ano, o mais caro já arrematado em leilão. Quem o comprou, por telefone, numa negociação que levou apenas 12 minutos, foi o investidor nova-iorquino Leon Black. Dono de uma coleção de US$ 750 milhões, ele levou a obra por US$ 120 milhões, cobrindo a oferta de US$ 85 milhões do empresário paulista Carlos Sánchez, o maior fabricante de genéricos do Brasil.
Agora, fora do ambiente dos leilões, outro brasileiro busca conquistar direitos pelo quadro. O historiador e escritor Rafael Cardoso, de 47 anos, é bisneto do primeiro proprietário da obra: o banqueiro e mecenas judeu alemão Hugo Simon. Proprietário de O grito entre 1926 e 1937, Simon precisou se desfazer às pressas dos bens para escapar da invasão nazista, quando estava exilado em Paris. O quadro, a partir de então, rodou a Europa, e ele nunca mais teve notícia de seu paradeiro.

Desde que passou a investigar a vida de seu bisavô, Cardoso se empenha em resgatar a história do parente, figura importante no cenário da arte do século XX. Seu objetivo, afirma, não é dinheiro para si ou para a família. Pretende receber parcela do valor de venda de O grito para fazer uma doação e instituir a cadeira Hugo Simon, com pesquisa de ponta em arte abordando expressionismo, exílio e Segunda Guerra Mundial, nas duas universidades onde estudou – a americana Johns Hopkins e a inglesa The Courtauld Institute of Art. Também quer levar o material de estudo para uma universidade brasileira, onde ele diz não haver estudos consistentes no ramo.


Antes de fugir do nazismo, o bisavô de Cardoso pôs o quadro em consignação nas mãos do negociante alemão Bruno Cassirer, que levou a tela para uma galeria na Suíça. A obra foi comprada, da Suécia, por Thomas Olsen, ex-vizinho de Munch. Apesar de disputas internas, ficou na posse da família até o leilão deste ano.Por ter sido comprada fora da zona de guerra e vendida entre países neutros, a obra não é considerada fruto de negócio ilegal. Mas esconde, segundo Cardoso, o drama de um judeu que precisa ser ressarcido pelos Olsens.
Cardoso disse a ÉPOCA que o negócio está “numa zona cinzenta”. “Embora a venda seja legalmente correta, é considerada moralmente dúbia”, afirma. Segundo ele, a prática no mercado de arte em casos como esse, que envolvem conflitos históricos, é promover um acordo entre o proprietário atual e a família do antigo dono para limpar a proveniência do quadro. “A origem duvidosa pode baixar o valor do quadro”, diz.

A família Olsen, porém, se recusa a discutir com Cardoso. O último detentor dos direitos da obra, Petter Olsen, bisneto de Thomas e empresário norueguês da indústria de navegação, ao saber da questão, fez uma única e pouco vantajosa proposta para o brasileiro. Ofereceu à família de Cardoso, depois do leilão, que escolhesse uma instituição para que fossem doados US$ 250 mil em nome de Petter. A oferta foi recusada por dois motivos. Primeiro, pelo baixo valor comparado à venda da obra. “O correto seria um acordo de pelo menos 1% do valor da compra (US$ 1,2 milhão)”, diz Cardoso. A segunda razão, segundo ele, foi a impossibilidade de resgatar a história de Simon e levá-la para o ambiente acadêmico.

LEMBRANÇAS DE FAMÍLIA Rafael Cardoso e as malas de fotos, documentos  e cartas deixadas pelo bisavô. Ele quer reconstituir a história de Hugo Simon, que foi dono de O grito  (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)
Independentemente do desfecho da trama, Cardoso afirma que passará um ano na Alemanha pesquisando a história oculta do bisavô para escrever uma biografia. O ponto de partida são malas de ferro e alumínio empilhadas em sua casa, repletas de fotografias, cartas e documentos herdados de uma tia-avó, que trouxe o material para o Rio de Janeiro, aos 23 anos, sem saber o valor. Sabe-se que Hugo Simon era um homem muito rico na Alemanha pré-Hitler, um banqueiro com inclinações “à esquerda”. Sabe-se também que ele participou da República de Weimar convivendo com figuras da intelectualidade de seu tempo, como o “conde vermelho” Harry Kessler e Walter Rathenau, o primeiro estadista judeu da Alemanha moderna. Por um período curto, Simon foi ministro das Finanças da Prússia. No campo das artes, foi, desde cedo, um mecenas respeitado. Tornou-se o primeiro a comprar obras dos expressionistas Georg Grosz e Oscar Kokotscha.

Outra certeza é que a história de Simon é marcada por muitas fugas. Avisado pelos amigos de que precisava sair do alcance dos nazistas, ele fugiu, num primeiro momento, para Paris – com a mulher, Gertrude, e as filhas Ursula, avó de Cardoso, e Anette. Em Paris, além de financiar um jornal antinazista, sua casa na Rua de Grenelle, perto da Torre Eiffel, era ponto de encontro entre intelectuais e artistas alemães exilados. Isso até o nazismo invadir as proximidades e formar a França de Vichy. Mais uma vez, Hugo e Gertrude foram forçados a escapar com as filhas e a se desfazer dos bens que haviam sobrado.

A história da fuga e dos pertences que escoaram coincide com a de 2 mil perseguidos que o americano Varian Fry salvou da Europa pela rota França-Espanha,
de Cerbère ou Banyules-sur-Mer a Port Bou atravessando os Pirineus. Entre eles estavam o irmão e o filho do escritor Thomas Mann, Heinrich e Golo; o irmão de Amadeo Modigliani, Giuseppe; os escritores Alfred Döblin, Friderike Zweig e Andre Gide; os artistas Andre Breton, Max Ernst, Marc Chagall e Henri Matisse, considerados “degenerados” pelo nazismo. O único que não aguentou o desespero, e na fronteira se matou com 15 comprimidos de morfina, foi o filósofo Walter Benjamin.

Integrantes da lista de perseguidos dos nazistas, Gertrude e Hugo Simon foram dados como mortos. Eles conseguiram passaportes falsos emitidos pelo cônsul tcheco Vladimir Vochoc, que transformavam Hugo em Hubert e Gertrude em Garina. O sobrenome Simon evaporou. Ambos viraram a família Studenic. Ao desembarcar no Rio de Janeiro, o casal foi acolhido no Mosteiro de São Bento com os novos nomes.

Judeu como eles, ali estava Dom Paulus Gordan, alemão refugiado como outros monges que povoavam o mosteiro carioca a partir do fim do século XIX, sob a bênção do prior Thomas Keller. Hugo, que ali era Hubert, e Gertrude, a Garina, ficaram no Rio até ser intimados a deixar o Brasil em 1941, como consequência de uma carta que expulsava do país “estrangeiros indesejáveis”.Fugitivos outra vez, foram para Barbacena, Minas Gerais. Nessa fase, Hugo-Hubert escreveu 1.600 páginas de um manuscrito inédito e inacabado, Bicho da seda (Seidenraupen), inspirado nos versos do drama Torquato Tasso, de Goethe. A obra, diz o bisneto Cardoso, ainda está em boas condições. Ele doou o manuscrito à Biblioteca Nacional de Frankfurt, e a pesquisadora alemã Marlen Eckl quer traduzir para o português.

No final da vida, o genro de Simon, Andre Denys, adquiriu uma casa no bairro paulistano de Interlagos, onde abrigou as tais malas com as papeladas. A historiadora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Isabela Kestler mostrou a Cardoso a importância do bisavô e a raridade daqueles papéis, fotos, passaportes e manuscritos. Ela publicou uma tese lamentando que Bicho da seda e Simon estivessem esquecidos, e que os projetos éticos e a documentação da reforma social da elite alemã de esquerda da República de Weimar fossem pouco analisados.

Isabela escreveu que Hugo Simon, ao lado de Stefan Zweig, foi “o exilado mais proeminente no Brasil”. Mas ela não pôde dar continuidade a seu projeto de analisar a fundo essa história. Isabela morreu no avião da Air France que caiu no mar em 2009, a caminho da Alemanha, onde pretendia levantar dados de Simon e de outros exilados.

Diante de tantas lacunas e perdas, Cardoso não quer viver no passado. Mas diz que não poupará esforços para realizar o desejo de recuperar a história do bisavô, que é também a da arte alemã no exílio. Ele questiona, agora, se o atual dono de O grito, Leon Black, colocará essa versão em sua casa, na Park Avenue, como faz com o resto de sua coleção, ou se aceitará a pressão de um dos dois museus de onde é conselheiro – o Metropolitan e o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA.

Se não ficar em exposição pública, resta aos fãs de arte caçar as outras três versões de O gritoespalhadas pelo mundo (leia no quadro abaixo). A ligação do Brasil será sempre com a terceira, em pastel, que delineia violentas ondas de rádio, retratando um homem esquelético em desespero na ponte sobre a Baía de Oslo, muito procurada por suicidas, perto de um hospício de onde, diziam relatos, podiam-se ouvir gritos desesperados.
Para Cardoso, O grito será sempre símbolo dos brados dos refugiados que não conseguiram entrar no Brasil, dos que entraram e partiram, dos que se suicidaram, como Stefan Zweig, amigo de Simon citado em Bicho da seda, e dos que vieram para ficar e contribuir com a arte e a cultura brasileira.

As quatro versões de O grito, de Edvard Munch (Foto: Fotos: Stian Lysberg Solum/Scanpix Norway/AP, AP e The Art Archive/Nasjonal Galleriet Oslo/AP)

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