17/09/2012

Embotamento ideológico


Padre Manfredo Oliveira*
Ouve-se muito as pessoas comentar que não veem grandes diferenças nas propostas apresentadas pelos candidatos dos mais diversos partidos e coligações na atual campanha eleitoral. De certo modo isso confirma a interpretação político-ideológica de vários analistas de nossa situação presente. O que caracteriza essa conjuntura para essa corrente de pensamento é o desaparecimento da contraposição radical de posturas: estaríamos em plena feira ideológico-político-partidária, um cenário que leva a justificar alianças absurdas que se apresentam como legítimas pelos resultados que o governo tem conseguido no campo das políticas sociais.

Muitos insistem no fato fundamental de que hoje muitas famílias tenham saído da pobreza ou da miséria, tenham conseguido um emprego com todas as garantias trabalhistas e que as políticas de cotas tenham levado muitos jovens da periferia para o ensino superior.

O professor de filosofia na USP V. Safatle, por exemplo, considera nosso momento marcado por um conservadorismo que é filho bastardo do “lulismo” definido pela aliança de setores da esquerda brasileira e alas de políticos conservadores à busca de sobrevida. Essa aliança tornou possível tanto a constituição de um sistema de seguridade social até hoje inédito em nosso país quanto a ascensão econômica de grandes parcelas da população brasileira por meio, sobretudo, da ampliação do consumo.

Para Safatle, tal ascensão foi capaz de gerar um sentimento de cidadania, mas não passou pelo acesso a serviços sociais ampliados e consolidados em sua qualidade. Essa ascensão significou, além de uma importante expansão das universidades federais, poder pagar escola privada, plano de saúde privado, celular, eletrodomésticos e frequentar universidade privada. Isso significa dizer que os direitos da cidadania foram interpretados como direitos do consumidor.

Defende-se, contudo, a ideia de que essas medidas, apesar de significativas, não são capazes de romper com as raízes mais profundas das desigualdades que historicamente têm marcado nossa formação social. É nesse sentido que hoje se costuma dizer que acabou a diferença entre direita e esquerda. Aqui se pensa esquerda como postura ou movimento que luta por mudanças estruturais direcionadas para a igualdade e a justiça social e ecológica. A afirmação vai na direção de dizer que no Brasil de hoje todos se situam no centro com exceção dos pequenos partidos ideológicos que praticamente não pesam no cenário político.

Com isso ocorre, na realidade, um enorme encurtamento do horizonte da ação política o que a faz incapaz de responder ao grande desafio de nossa situação: a busca de instituições e mecanismos capazes de efetivar uma configuração nova da vida coletiva, uma sociedade em que todos os direitos sejam reconhecidos, promovidos e efetivados para todas as pessoas num mundo em que a terra tem o direito de manter-se com as energias que a fazem fonte de vida.

Nessa perspectiva, a democratização de nossa vida passa por mudanças profundas do atual sistema centralizado com reformas estruturais abrangentes que realizem o objetivo básico estabelecido na Constituição: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

*Filósofo e professor da UFC. Padre da Arquidiocese de Fortaleza - manfredo.oliveira@uol.com.br
Artigo publicado no jornal O Povo, domingo, 16 de setembro de 2012: http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/09/15/noticiasjornalopiniao,2920393/embotamento-ideologico.shtml

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