14/02/2012

O arrastão que levou Elis

 
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio
Adital
Passou a data, eu sei. Outros temas que pareciam urgentes me pressionaram. Assuntos que diziam respeito aos vivos de agora, da história. Eram suas vidas que estavam em questão e isso não permitia adiamento. Porém é tempo sempre, e mais e quanto para falar de uma imorredoura artista. Viva na memória e no lastro estético da humanidade. Viva em Deus que lhe deu o dom divino da música que saía qual instrumento de sua privilegiada garganta.
E eis-me aqui, em pleno fevereiro, a homenagear Elis Regina. A Pimentinha, o furacão de voz potente e aveludada. Jeito de menina e coração maduro de mulher. Sorriso maroto escondendo dores e amores. Temperamento forte, que picava feito pimenta na boca, fazendo língua arder e olhos chorarem. Arte que explodia em beleza e maravilha, fazendo a baixinha ganhar estatura de gigante e os ouvintes vibrarem em uníssono, arrastados por seu canto.
Arrastar... era isso que Elis mais sabia fazer. Arrastar a plateia com seu canto, com os movimentos de seu corpo, sua vibração única e incontida. Arrastar a imaginação dos que a ouviam e imaginavam, inspirados por sua voz única e inconfundível, praias e redes cheias de peixes, águas caindo em março e fecundando terra e fechando os caminhos. Arrastar o público em uníssono entusiasmo e delírio musical, acompanhando o movimento de moinho de vento de seus jovens braços.
Sou da geração que Elis "arrastou”. Arrastou com sua voz, com seu canto, com seu repertório impecável, com sua voz inigualável a experiências de plenitude de vida e gozo musical. Arrastou para um novo tempo, uma nova etapa de viver. Nós e o Brasil estávamos passando por profundas transformações. E a força vulcânica da arte de Elis Regina ajudou a nos "arrastar” para uma esperança que, para muitos de nós, já não parecia possível. Ouvir a vibrante voz da Pimentinha conclamando a entrar no mar e acreditar numa pesca milagrosa quando o mar parecia literalmente "não estar para peixe” foi algo inesquecível.
Tive a oportunidade de acompanhar toda a sua trajetória. Conscientizei-me com suas canções de protesto: Upa Neguinho, Estatuinha, Deus com brasileira.
Pois que artista algum dia pensou em inscrever a própria voz, como se fosse um instrumento, na Ordem dos Músicos do Brasil? Ela o fez. E bem o fez, pois sua voz era em realidade um instrumento, puro e melodicamente afinado pelo próprio Criador, que conhecia os sons corretos e absolutamente adequados a emitir a cada instante e momento. A voz de Elis, com suas pregas e cordas vocais, era algo por demais precioso para não figurar ao lado de oboés, violinos, cellos e etc.
Aos 36 anos ela se foi. Certamente ficaria triste se soubesse que hoje quando se fala em arrastão não se pensa na vibração de alegria da canção de Vinicius e Edu lobo que ela imortalizou. Arrastão hoje, Elis, infelizmente significa algo feio e triste. São muitos meninos pobres e infelizes, descendentes diretos do neguinho com o qual você fazia Upa, que não encontram sentido para suas vidas vergadas pela injustiça e pela opressão que herdaram.
E, então, encontram no furto e no roubo o gesto com o qual expressam sua raiva, sua não conformidade com o estado das coisas como estão, seu desejo de aceder ali onde as classes poderosas não lhes permitem chegar. Arrastão é sinônimo de violência, de desordem, de caos, não da alegria esfuziante que você cantou. O "Brazil” que não conhece o Brasil e que nunca foi ao Brasil que você denunciou com seu canto continua ativo. Infelizmente. São necessários mais talentos como o seu para exorcizá-lo.
[Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].
 a família. Chorei muito e sentidamente com Eu preciso aprender a ser só. Vivi romance empolgante com Falso Brilhante. Rezei tanto e tantas vezes ao som de Romaria, que até hoje facilita o encontro de tantos e tantas com Deus. E vibrei, com tantos, com quase todos, quando O bêbado e a equilibrista nos fez lembrar que não havia que deixar de sonhar com a "volta do irmão do Henfil e de tanta gente que partiu num rabo de foguete”.
Depois, tão cedo, tão prematura, a notícia de sua morte. Notícia triste, tão triste que não apenas o Brasil chorou, mas o mundo inteiro. Perder tão cedo uma artista assim completa, assim agraciada, assim vital, era um empobrecimento cruel que nos golpeou duramente. E do qual até hoje não nos recuperamos completamente. Outras artistas – genialmente talentosas algumas - vieram simultânea ou posteriormente a Elis. Mas há um lugar ocupado por ela, onde até hoje existe um vácuo. Sua unicidade ainda é um fato na constelação privilegiada que ilumina a arte

Nenhum comentário :

Postar um comentário