24/11/2012

A disciplina da expressão literária



AÍLA SAMPAIO*

Os poetas da terceira fase do Modernismo não resgatam exatamente o metapoema. A concepção da poesia como uma obra de arte, herdada da Antiguidade Clássica, e que foi, séculos depois, restaurada pelo Classicismo português e seguida pelo Parnasianismo é o que evoca a poesia da Geração de 45. 

Tal postura se revela na restauração da disciplina expressiva, no estudo da poética e na investigação verbal, mas parece, na opinião de Domício Proença Filho (1995, pp.551-2), que a sua proposta estética termina por "caracterizar, no todo, a retomada nostálgica de comportamentos neo-parnasianos e neo-simbolistas, sem maiores aprofundamentos, numa restauração regressora de propostas e modelos contra os quais se colocaram os revolucionários escritores de 22". 


Faltou-lhe, pois, definição mais objetiva. No final das contas, foi uma estética cuja realização artística não correspondeu aos propósitos preconizados e que apenas posicionou-se veementemente contra os revolucionários de 22.


Poesia como esforço


As reflexões sobre o processo criativo é, neste mesmo período, o leitmotiv da obra de um poeta voluntariamente excluído do programa de 45: João Cabral de Mello Neto.


Através dos seus textos, Cabral nos dá conta de que a poesia deixa de ser fruto de um momento de inspiração e passa a ser o resultado de um esforço cerebral, um trabalho de artesão da palavra. Se para Bilac o trabalho do poeta se assemelha ao minucioso labor do ourives, Cabral o compara à atitude exata do engenheiro. Ele mostra que constrói seus poemas preocupado com a organização do texto, a concisão e a precisão da linguagem, o que faz questão de revelar dentro do próprio texto que produz e que se avulta numa obra a esse tema dedicado, como mostra, e muito bem, o próprio título Psicologia da composição (1994). (Texto VIII)


Essencialmente cerebral, a poética de João Cabral é a continuidade da lírica moderna (FREDRICH, 1991), da concepção poética como um trabalho de linguagem, como preceituavam sobretudo Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud no Simbolismo francês, com a ideia de poesia pura e poética do silêncio.



Na ficção


Seguindo nosso percurso, encontramos Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, refletindo sobre o seu monólogo e Clarice Lispector, em A hora da estrela (1999), criando um narrador fictício, Rodrigo S. M., que constantemente confabula ao leitor a forma como tenta escrever a história de Macabéa: (texto IX)


As reflexões de Rodrigo acerca de sua criação fazem com que o livro possa ser desmembrado em três momentos: o primeiro é a história do próprio Rodrigo; o segundo, a história de Macabéa; e o terceiro, as considerações sobre a forma como a obra está sendo escrita.


Na pós-modernidade


As experiências com o texto poético prosseguem no pós-modernismo, em praticamente todos os movimentos por que passa a poesia. O primeiro deles, o Concretismo, coloca a concepção do poema como resultado de investigação verbal. A poesia-práxis se auto-define como um processo literário marcado pela consideração de que a sintaxe é um resultado original da transformação a que o poeta submete a palavra. No poema-processo o fazer literário é a proposta do próprio manifesto, que mostra o valor da utilização de elementos não linguísticos para a composição de muitos de seus trabalhos.


Já a poesia marginal, além de representar a volta ao discurso, traz a linguagem coloquial e os temas cotidianos, por vezes inseridos em problemas sociais. Embora o movimento não tenha traçado diretrizes nem dimensionado novas propostas estéticas, o processo criativo se revela no corpo dos textos de muitos dos seus adeptos: Cacaso (Na corda bamba / Poesia/ eu não te escrevo / eu te/ vivo); Ana Cristina César (Eu penso / a face fraca do poema / a metade da página partida / Mas calo a face dura / flor apagada no sonho / Eu penso / a dor visível do poema / a luz prévia dividida / Mas calo a superfície negra / pânico iminente do nada); Chacal ( pego a palavra no ra / no pulo paro / vejo aparo/ burilo / no papel reparo e sigo / compondo o verso) e, sobretudo em Paulo Leminski: que em sua Poesia mostra a concepção de poesia de vários escritores, inclusive filósofos e linguistas, dentre eles Pound, Maiakóviski, Goethe, Jakobson, Valery, Heidegger, Novalis, Coleridge, Wordsworth, Vigny, Mallarmé, Fernando Pessoa, Mathew Arnold, Sartre, Octávio Paz, Bob Dylan, Décio Pignatari, Garcia Lorca, Robert Frost e, dele próprio, que a define como a liberdade da minha linguagem.


Leituras


Observemos um dos textos de Mário Quintana: (Texto X)


Assim como Bilac mostra que o poeta Trabalha e teima, e lima e sofre e sua!, Quintana diz fazer poesia como os saltimbancos, entre convulsões e arrancos, desconjuntando os ossos, ou seja, sua poesia decorre também de esforço, acrobacias linguísticas. Manuel de Barros mostra a sua concepção do ato de escrever, como um criador de novas formas. Sua integração com a natureza, permanentemente justificada pelas suas raízes, se estende à sua integração ao mundo das palavras e à arbitrariedade do signo linguístico. Inquieto e perscrutador da criação, sua obra se volta, quase toda para a compreensão do fenômeno que a origina: (Texto XI)


Conclusão


Não constitui característica de um período literário a preocupação em expressar o ato da criação. Praticamente em todos os estilos os escritores debruçaram-se sobre o fenômeno literário, mostrando, cada um, a sua postura diante dos fatos motivadores seus próprios textos. Não esgotamos, evidentemente, o nome dos escritores que se voltaram para essa tendência, nem os poemas dos que aqui se fizeram presente, apenas procuramos fazer um breve percurso, através das escolas e dos movimentos literários, no intuito de mostrar como o texto, seja a poesia ou a prosa, tem e sempre teve essa preocupação de procurar explicar-se através de seu próprio discurso, fazendo prevalecer a função metalinguística. Evidencia-se notadamente essa tendência na literatura produzida entre os anos 60 até hoje. 


Trechos


TEXTO VIII


Não a forma encontrada / como uma concha, perdida / nos frouxos areais / como cabelos: //// mas a forma atingida / como a ponta do novelo / que a atenção, lenta / desenrola...


TEXTO IX


Como eu irei dizer agora, esta história será o resultado de uma visão gradual - há dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porquês. ... Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa exterior e explícita... Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há veracidade nela - e é claro que a história é verdadeira embora inventada - que cada um a reconheça em si mesmo... Se em vez de ponto fosse seguido por reticências o título ficaria aberto a possíveis imaginações vossas, porventura até malsãs e sem piedade (pp.12-13)


TEXTO X


Eu faço versos como os saltimbancos / Desconjuntam os ossos doloridos. / A entrada é livre para os conhecidos... / Sentai Amadas, nos primeiros bancos! /// Vão começar as convulsões e arrancos / Sobre os velhos tapetes estendidos... / Olhai o coração que entre gemidos / Giro na porta dos meus dedos brancos!


TEXTO XI 


No descomeço era o verbo. / Só depois é que veio o delírio do verbo. / O delírio do verbo estava no começo, lá onde a / Criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. / A criança não sabe que o verbo escutar não funciona /Para cor, mas para som. / Então a criança muda a função de um verbo, ele / Delira. / E pois. / Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer nascimentos - / O verbo tem que pegar delírio.


SAIBA MAIS


FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica Moderna. 2a. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991.


HOUAISS, Antônio. Introdução. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 8a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977


PEREIRA, Anto. Carlos Messeder. Retrato de época; poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro


PROENÇA FILHO, Domício. Literatura e Pós Modernismo. 2a. ed. São Paulo: Ática, 1995


VERLAINE, Paul. Apud CARLIER, Marie-Caroline. Parnasse et Symbolisme. Paris: Hatier, 1986



* Escritora, poetisa, ensaístas e professora da UNIFOR
Fonte: Diário do Nordeste

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