Essa postura metalinguística não constitui traço essencial de apenas um estilo, perpassa quase todos como mantenedora de uma preocupação, comum aos escritores de todas as épocas, em discutir o fenômeno literário dentro do texto que produzem. Tal incidência se avulta na poesia moderna, chegando a constituir uma das características da poética contemporânea. Faremos um breve percurso para observar sua incidência em textos de escritores brasileiros e, oportunamente, mostraremos a concepção do ato criativo deles através de suas próprias produções. No Romantismo, não se observa a postura metapoética diretamente nos textos literários, mas deve-se observar que a intenção de mostrar o posicionamento estético da corrente já era evidente. No prefácio do livro Suspiros poéticos e saudades, lançado em 1836, Gonçalves de Magalhães deixa claros os princípios poéticos da poesia romântica no que concerne ao aspecto formal dos textos: (Texto I)
Embora revele a projeto estético do Romantismo, o livro de Magalhães não o realiza nos seus versos. O valor da obra está no fato de constituir o marco inicial do primeiro estilo de época da era nacional e no prefácio, propagador do processo criativo dos românticos, que obedecia à inspiração.
Tal processo, embora amplamente divulgado e realizado nos textos, não serviu de leitmotiv para os versos de nenhum de seus poetas.
É em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) que a preocupação em expor o processo de criação se revela, pela primeira vez, no próprio texto. No prólogo - Ao leitor - Brás Cubas diz: evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo.
Seria curioso, mas nimiamente extenso e aliás desnecessário ao entendimento da obra. Entretanto, não resiste a fazer revelações sobre o estilo de seu texto: (Texto II) Embora aparentemente despretensiosa, a postura do narrador Brás Cubas revela traços da estética realista, sobretudo expondo estratégias de afirmação do estilo na obra, como a instauração do narratário, elemento extratextual, alvo de sua ironia e das constantes investidas, para que o leitor sinta-se dentro da história, o que torna a narrativa bastante lenta, bem aos moldes da corrente em que se insere.
Na poesia brasileira, é com o poema Profissão de fé, de Olavo Bilac, que a obra literária se interpõe como o esboço de um estilo, embora a sua publicação tenha se dado já com o movimento artístico devidamente implantado. Os princípios artísticos se definem pelo ato de escrever como um labor criterioso, tal como o trabalho do ourives. A busca da perfeição formal se impõe na plataforma teórica do Parnasianismo, que é a concepção da arte pura e simplesmente pela arte: (Texto III)Também em A um poeta Bilac mostra o trabalho do poeta que, ao produzir seu texto, Trabalha e teima, e lima e sofre e sua!, recomendando jamais se mostrar na fábrica o suplício do mestre, ou seja, a Arte pura, inimiga do artifício é a força e a graça na simplicidade. O esforço do poeta, embora imprescindível para a produção da poesia parnasiana, não deve jamais ser repassada ao leitor.
Águas correntes
No Simbolismo brasileiro pouco se percebe a função metalingüística nos textos, mas tem-se presentes em Antífona (1893), de Cruz e Souza, os elementos fundamentais do estilo, como se o poeta demonstrasse ter incorporado as recomendações feitas por Verlaine, poeta parnasiano francês, em A arte poética (1874): (Texto IV)
Leia-se Antífona e observe-se a presença da musicalidade, da atmosfera de sonho, da luminosidade, da anti-eloquência, da ambiguidade das palavras e da forma vaga de expressar a realidade, elementos preceituados por Verlaine: (Texto V)
Só em 1922 é que vem à tona a reação aos preceitos parnasianos, quando na primeira noite da Semana de Arte Moderna, Ronald de Carvalho recita o poema Os sapos, de Manuel Bandeira, que expõe claramente, de forma irônica, a crítica dos modernistas à concepção da arte poética dos parnasianos: (Texto VI)
Ao mesmo tempo em que critica explicitamente o Parnasianismo, Bandeira revela, implicitamente, a postura do estilo nascente. Ele próprio confessou no Itinerário de Pasárgada (1957): "A propósito desta sátira, devo dizer que a dirigi mais contra certos ridículos post-parnasianismo. ´É verdade que nos versos "A grande arte é como lavor de joalheiro" parodiei o Bilac da Profissão de fé (Imito o ourives quando escrevo...)"
Mas é com Poética que ele desabafa o desejo de liberdade formal do Modernismo, levantando a bandeira da Geração de 22, que rompia definitivamente com a forma moldada a uma "fôrma": (Texto VII) (Há, na produção literária de Manuel Bandeira outros textos em que ele refleta acerca dos diversos caminhos por que se orienta a criação.)
Trechos
TEXTO I
Quanto à forma, isto é, à construção (...) nenhuma ordem seguimos; exprimindo as idéias como elas se apresentaram, para não destruir o acento da inspiração (...) cada paixão requer sua linguagem própria.
TEXTO II
Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho o que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade.
Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e ente livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, anda e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...
TEXTO III
Quero que a estrofe cristalina / Dobrada ao jeito / Do ourives, saia da oficina / Sem nenhum defeito.
TEXTO IV
A música antes de qualquer cois / E para isso prefere o Ímpar, / Mais vago e mais solúvel no ar, / Sem nada nele que pese ou que pouse. /// Também é necessário que tu não vás / Escolher tuas palavras sem alguma ambigüidade: / Nada mais querido que a canção cinza / Onde o Indeciso ao Preciso se una.
TEXTO V
Formas alvas, brancas, Formas claras / De luares, de neves, de neblinas!... / Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... / Incensos dos turíbulos das aras...
TEXTO VI
O sapo-tanoeiro, / Parnasiano aguado, / Diz: __ "Meu cancioneiro / É bem martelado. /// Vede como primo / Em comer os hiatos! / Que arte! E nunca rimo / Os termos cognatos.
TEXTO VII
Estou farto do lirismo comedido / Do lirismo bem comportado. / Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bêbados /
O lirismo difícil e pungente dos bêbados / O lirismo dos clowns de Shakespeare /
Não quero mais saber de lirismo que não é libertação.
AÍLA SAMPAIOCOLABORADORA*
*Professora da Unifor. Poetisa e ensaísta.
Diário do Nordeste
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