24/11/2012

O fenômeno da criação

O texto literário não constitui interesse exclusivo da crítica. Ele próprio tem-se debruçado sobre o fenômeno que o gere, como se cada escritor tivesse a premente necessidade de, através de sua obra, buscar uma definição para a poesia, ou revelar a plataforma estética da escola a que se filia ou, ainda, refletir acerca de seu processo criativo

Essa postura metalinguística não constitui traço essencial de apenas um estilo, perpassa quase todos como mantenedora de uma preocupação, comum aos escritores de todas as épocas, em discutir o fenômeno literário dentro do texto que produzem. Tal incidência se avulta na poesia moderna, chegando a constituir uma das características da poética contemporânea. Faremos um breve percurso para observar sua incidência em textos de escritores brasileiros e, oportunamente, mostraremos a concepção do ato criativo deles através de suas próprias produções. No Romantismo, não se observa a postura metapoética diretamente nos textos literários, mas deve-se observar que a intenção de mostrar o posicionamento estético da corrente já era evidente. No prefácio do livro Suspiros poéticos e saudades, lançado em 1836, Gonçalves de Magalhães deixa claros os princípios poéticos da poesia romântica no que concerne ao aspecto formal dos textos: (Texto I)

Embora revele a projeto estético do Romantismo, o livro de Magalhães não o realiza nos seus versos. O valor da obra está no fato de constituir o marco inicial do primeiro estilo de época da era nacional e no prefácio, propagador do processo criativo dos românticos, que obedecia à inspiração.

Tal processo, embora amplamente divulgado e realizado nos textos, não serviu de leitmotiv para os versos de nenhum de seus poetas.

É em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) que a preocupação em expor o processo de criação se revela, pela primeira vez, no próprio texto. No prólogo - Ao leitor - Brás Cubas diz: evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo.

Seria curioso, mas nimiamente extenso e aliás desnecessário ao entendimento da obra. Entretanto, não resiste a fazer revelações sobre o estilo de seu texto: (Texto II) Embora aparentemente despretensiosa, a postura do narrador Brás Cubas revela traços da estética realista, sobretudo expondo estratégias de afirmação do estilo na obra, como a instauração do narratário, elemento extratextual, alvo de sua ironia e das constantes investidas, para que o leitor sinta-se dentro da história, o que torna a narrativa bastante lenta, bem aos moldes da corrente em que se insere.

Na poesia brasileira, é com o poema Profissão de fé, de Olavo Bilac, que a obra literária se interpõe como o esboço de um estilo, embora a sua publicação tenha se dado já com o movimento artístico devidamente implantado. Os princípios artísticos se definem pelo ato de escrever como um labor criterioso, tal como o trabalho do ourives. A busca da perfeição formal se impõe na plataforma teórica do Parnasianismo, que é a concepção da arte pura e simplesmente pela arte: (Texto III)Também em A um poeta Bilac mostra o trabalho do poeta que, ao produzir seu texto, Trabalha e teima, e lima e sofre e sua!, recomendando jamais se mostrar na fábrica o suplício do mestre, ou seja, a Arte pura, inimiga do artifício é a força e a graça na simplicidade. O esforço do poeta, embora imprescindível para a produção da poesia parnasiana, não deve jamais ser repassada ao leitor.

Águas correntes

No Simbolismo brasileiro pouco se percebe a função metalingüística nos textos, mas tem-se presentes em Antífona (1893), de Cruz e Souza, os elementos fundamentais do estilo, como se o poeta demonstrasse ter incorporado as recomendações feitas por Verlaine, poeta parnasiano francês, em A arte poética (1874): (Texto IV)

Leia-se Antífona e observe-se a presença da musicalidade, da atmosfera de sonho, da luminosidade, da anti-eloquência, da ambiguidade das palavras e da forma vaga de expressar a realidade, elementos preceituados por Verlaine: (Texto V)

Só em 1922 é que vem à tona a reação aos preceitos parnasianos, quando na primeira noite da Semana de Arte Moderna, Ronald de Carvalho recita o poema Os sapos, de Manuel Bandeira, que expõe claramente, de forma irônica, a crítica dos modernistas à concepção da arte poética dos parnasianos: (Texto VI)

Ao mesmo tempo em que critica explicitamente o Parnasianismo, Bandeira revela, implicitamente, a postura do estilo nascente. Ele próprio confessou no Itinerário de Pasárgada (1957): "A propósito desta sátira, devo dizer que a dirigi mais contra certos ridículos post-parnasianismo. ´É verdade que nos versos "A grande arte é como lavor de joalheiro" parodiei o Bilac da Profissão de fé (Imito o ourives quando escrevo...)"

Mas é com Poética que ele desabafa o desejo de liberdade formal do Modernismo, levantando a bandeira da Geração de 22, que rompia definitivamente com a forma moldada a uma "fôrma": (Texto VII) (Há, na produção literária de Manuel Bandeira outros textos em que ele refleta acerca dos diversos caminhos por que se orienta a criação.)

Trechos

TEXTO I

Quanto à forma, isto é, à construção (...) nenhuma ordem seguimos; exprimindo as idéias como elas se apresentaram, para não destruir o acento da inspiração (...) cada paixão requer sua linguagem própria.

TEXTO II

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho o que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade.

Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e ente livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, anda e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...

TEXTO III

Quero que a estrofe cristalina / Dobrada ao jeito / Do ourives, saia da oficina / Sem nenhum defeito.

TEXTO IV

A música antes de qualquer cois / E para isso prefere o Ímpar, / Mais vago e mais solúvel no ar, / Sem nada nele que pese ou que pouse. /// Também é necessário que tu não vás / Escolher tuas palavras sem alguma ambigüidade: / Nada mais querido que a canção cinza / Onde o Indeciso ao Preciso se una.

TEXTO V

Formas alvas, brancas, Formas claras / De luares, de neves, de neblinas!... / Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... / Incensos dos turíbulos das aras...

TEXTO VI

O sapo-tanoeiro, / Parnasiano aguado, / Diz: __ "Meu cancioneiro / É bem martelado. /// Vede como primo / Em comer os hiatos! / Que arte! E nunca rimo / Os termos cognatos.

TEXTO VII

Estou farto do lirismo comedido / Do lirismo bem comportado. / Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bêbados /

O lirismo difícil e pungente dos bêbados / O lirismo dos clowns de Shakespeare /

Não quero mais saber de lirismo que não é libertação.

AÍLA SAMPAIO
COLABORADORA*
*Professora da Unifor. Poetisa e ensaísta.
Diário do Nordeste

Nenhum comentário :

Postar um comentário