ESPECIAL PARA O POVO
Com trabalhos como o de Niemeyer, a arquitetura brasileira passa a exprimir criticamente seus anseios de identidade, opondo-se à mera reprodução estilística
Nos dias atuais, quando muitos arquitetos se preocupam em importar soluções arquitetônicas estranhas à nossa cultura, embevecidos por um esteticismo exógeno e uma tecnologia que mal conseguem interpretar, torna-se quase impossível entender uma arquitetura que se voltou para as questões da identidade brasileira, forçosamente dedicada à descoberta de uma linguagem própria, tendo encontrado no passado as referências indispensáveis à sua formulação.
Ao referenciar a nova arquitetura à produção luso-brasileira, os modernistas reconheciam o esforço progressivo de auto-identificação que alimentou a formação da arquitetura brasileira. Consideraram as dificuldades dos primeiros tempos, advindas da cultura portuguesa em território adverso e o lento processo de aculturação da arquitetura portuguesa. Ao recuperá-la para os novos tempos assumiam implicitamente a expressividade barroca, nossa primeira manifestação artística conatural e legítima, inscrevendo o passado colonial na dinâmica do modernismo. Desvelaram, através dessa prática poética, a procura por uma identidade própria fundada na tradição. Por outro lado, em seu esforço de modernização, os modernistas também haveriam de valer-se da introjeção dos novos processos produtivos de procedência européia.
Ao tentar conciliar tradição e modernidade, tornou-se evidente a impossibilidade da plena inclusão da nova arquitetura no projeto iluminista, levando-se em conta que cada processo produtivo guarda especificidades próprias. Da pretensão em estabelecer a convivência entre o mundo do artesanato e o da indústria, mediante a criação de uma linguagem nativa, decorrerá uma contradição fundante que acompanhará a nova arquitetura ao longo de seu tempo. As práticas artesanais setecentistas implicam o uso restrito de uma tecnologia incipiente, a utilização de instrumentos rudimentares de trabalho e o lento decurso do tempo; enquanto as práticas industriais pressupõem uma lógica produtiva referida à diversidade dos materiais e ao apuro instrumental, celeridade e mecanização, objetivando a reprodutibilidade do objeto.
Ora, a cada um dos processos corresponde uma expressividade própria. De fato, cada modo de produção inaugura uma sintaxe própria ao exprimir os valores culturais da época, guardando restrições severas à permanência da linguagem do modo de produção anterior. A dificuldade dessa convivência é ainda mais significativa porque o mundo da produção cria “não apenas um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto” (Marx). Entretanto, é sobre a artificial conjunção dessas expressividades que se estabelecerá a linguagem da arquitetura nova. Ela resultará necessariamente ambígua, distinguindo-se das produções hegemônicas ao tempo em que provoca a dificuldade de seu entendimento, a perplexidade e a admiração, além de críticas veementes.
Lúcio Costa é o artífice da nova linguagem. Em visita realizada à cidade mineira de Diamantina, ele terá o súbito descortino dos valores a serem preservados. Ao deparar-se com a cidade, deixa-se encantar pela maestria dos artesãos e a rusticidade dos meios construtivos. Rende-se a esse mundo que recende brasilidade – o casario conformando caminhos tortuosos porque ajustados à topografia, abrindo em largo à presença das igrejas, contendo em seu interior os retábulos sobre os quais pulsa o trabalho anônimo de quem sobre eles se debruçou. A cidade das minas exala a densidade da vida setecentista afeita ao tátil e aos apelos visuais. Uma arquitetura sóbria e direta, de cunho essencialmente popular. Estavam ali os almejados referenciais de brasilidade que seriam incorporados à arquitetura moderna brasileira, cuidando para não repetir o lamentável equívoco da arquitetura neocolonial. Seria de todo inoportuno ver destacar do contexto os elementos arquitetônicos luso-brasileiros e justapô-los em livres arranjos. O entendimento correto do referencial decorrerá da reinterpretação dos valores da condição colonial pelos jovens arquitetos, e será menos um recurso à tipologia e mais uma atitude em face da modernidade (KATINSKY).
O edifício sede do Ministério da Educação e Saúde é fruto dessa síntese magnífica. Nasce inexplicavelmente maduro e contempla plenamente o ideário preconizado por Lúcio Costa – distribuição racional dos esforços mediante a utilização do concreto-armado (tecnologia que ainda guarda ranços artesanais), blocos de filiação cubista que se contrapõem, sendo um em altura com colunas esbeltas a apoiá-lo, franqueando as visuais e a passagem aos pedestres, revertendo em público o espaço privado do lote; o outro, alongado e ao nível do solo, com painéis de azulejo concebidos por Portinari, revestindo as paredes, tirando-lhes a densidade em benefício da nova função de dividir os espaços; a presença marcante do teto-jardim e do paisagismo inovador de Burle Max, a cortina de vidro na volumetria principal e o tratamento em brise da face ensolada, abrasileirando nas proporções o brutalismo lecorbusiano. Trabalho de equipe em que avulta a participação de Niemeyer, distinção feita pelo próprio Lúcio Costa, coordenador do projeto.
A partir desse trabalho tem início a trajetória única de Niemeyer. Parece-nos que Lúcio Costa o distingue dos demais arquitetos apenas e exatamente porque nele vê o melhor interprete de seu ideário. Esta suspeição apóia-se em alguns acidentes que marcam a trajetória de ambos e que não interessaria ressaltar aqui. O fato é que Lúcio não esconde a sua predileção pela obra de Niemeyer, como se pode verificar em resposta às formulações críticas do suíço Max Bill no I Congresso Internacional de Artistas, patrocinado pela UNESCO em setembro de 1952. Ao referir-se à Capela de São Francisco de Assis na Pampulha sentencia: “sem a Pampulha, a arquitetura brasileira na sua feição atual (...) não existiria. Foi ali que as suas características diferenciadoras se definiram”. Para Lúcio, a capela é “obra prima onde tudo é engenho e graça – o galbo da nave parabólica, o modo como se ilumina a capela-mor, o entrosamento da sacristia no corpo da igreja, a feliz articulação ascendente do pórtico ao campanário, a propriedade e perfeita integração dos azulejos na abside, da pintura no retábulo e da escultura no batistério –, foi, como era de prever, qualificada de barroca com a habitual intenção pejorativa. Ora graças, pois se trata, no caso de um barroquismo de legítima e pura filiação nativa que bem mostra não descendermos de relojoeiros, mas de fabricantes de igrejas barrocas”.
No barroquismo apontado por Lúcio Costa está em parte a chave do enigma. Cumpre acrescentar que o modernismo não trabalhou somente com “a memória das coisas realmente acontecidas, mas com todo o reino do possível e do imaginável” (AVERINI), assegurado pelo exercício da fantasia, da memória, das potências expressivas e estilizadoras. É quando a arquitetura brasileira passa a exprimir criticamente anseios de identidade, capaz de se opor à mera reprodução estilística, entrançando “os fios da memória com os da imaginação” (BOSI). De sorte que a arquitetura referenciada adquire os meios materiais indispensáveis à expressão de sua originalidade. Racionalidade estrutural, barroquismo na dramatização dos espaços e nas citações tipológicas, tudo segundo o exercício criativo cujos limites beiram o “reino do possível e do imaginável”, irão configurar sua linguagem. Essa equação induz à percepção da aura de brasilidade que a envolve, e ela a nós todos em certa e indefinida cumplicidade. Essa arquitetura que resulta simples em sua apreensão visual, repousando no solo sem qualquer peso (lembro-me de Antônio Francisco Lisboa, o aleijadinho), existe e teima em existir diferenciada da produção dos demais arquitetos brasileiros, exigindo a observação atenta e reflexões aprofundadas, impossíveis de serem tratadas aqui. O certo é que a obra de Niemeyer merece estudos mais sérios, principalmente dos críticos, arquitetos e estudantes de arquitetura. Claro que ela não é perfeita, possui equívocos e desacertos, mas não pode mais ser tratada com chavões ou impropriedades. Senão, por que a obra de Niemeyer é capaz de manter estreita sintonia com o povo brasileiro? As críticas descontextualizadas, freqüentemente referidas às particularidades da obra e desvinculadas de nossa história são por demais perniciosas. O mérito ou, se preferirem, o demérito dessa arquitetura está na presunção de sua brasilidade. Ela acompanhou e contribuiu culturalmente para a construção do imaginário brasileiro, da história deste país e da dignificação do seu povo.
Roberto Martins Castelo é arquiteto
SAIBA MAIS
Em outubro de 1969, o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (UFC) recebeu exposição de painéis fotográficos dos principais trabalhos de Oscar Niemeyer no Brasil e no exterior.
O arquiteto foi convidado pelo então reitor da UFC, Paulo Elpídio de Menezes, em agosto de 1979, para projetar a área de lazer do Campus do Pici, segundo registro da época na coluna Rodaviva, de Lúcio Brasileiro.
A escolha por Niemeyer incomodou alguns arquitetos da cidade, que viram a iniciativa como um “atestado de que os profissionais cearenses são dotados de recursos limitados”, como informa nota publicada dias depois.
Corria o mês de agosto de 1998 quando o arquiteto gaúcho Miguel Alves Pereira veio a Fortaleza para lançar o livro “Arquitetura, Texto e Contexto: o discurso de Oscar Niemeyer”, que fazia uma avaliação da arquitetura moderna no Brasil por meio do trabalho de Niemeyer
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