>>Esta reportagem faz parte da série sobre Oscar Niemeyer que está na edição de ÉPOCA desta sermana.
Existem gênios reconhecidos em vida, como o físico Albert Einstein, e os que só são reconhecidos séculos mais tarde, como o músico Johann Sebastian Bach. O reconhecimento do arquiteto Oscar Niemeyer, morto na quarta-feira (5) aos 104 anos, se deu em curvas tão acentuadas como as que marcam sua obra genial. Aclamado por Brasília, ele foi atacado nas décadas seguintes por construir prédios bons de ver e ruins de morar. Quando o pêndulo voltou, no século XXI, ele já era considerado um gênio, inspirador das mentes mais brilhantes da arquitetura contemporânea. “Niemeyer é o introdutor da liberdade na construção. Seu trabalho trouxe ar fresco para a arquitetura”, diz o português Álvaro Siza, vencedor do Prêmio Pritzker, o mais importante da arquitetura, em 1992. “A enorme influência que Niemeyer exerceu sobre arquitetos vinha de um entendimento generoso da condição humana”, afirma o americano Richard Meier (leia outros depoimentos abaixo). Siza e Meier – ao lado do americano Frank Gehry, do inglês Norman Foster, da iraquiana Zaha Hadid, do espanhol Santiago Calatrava, da dupla de suíços Jacques Herzog e Pierre De Meuron, do holandês Rem Koolhaas e poucos outros – formam uma espécie de dream team da arquitetura contemporânea. Por que essa geração gosta tanto de Niemeyer?
Para responder à pergunta, é ilustrativo examinar uma de suas obras, o Museu de Arte Contemporânea de Niterói. De qualquer ângulo que se veja o prédio circular, a impressão é que um enorme disco voador pousou na cidade, numa península à beira-mar. A arquitetura de Niemeyer é perturbadora como uma invasão alienígena. Para alguns de seus críticos, as obras que Niemeyer espalhou pelo mundo são como óvnis. Agressivas, ignoram a natureza e não levam em consideração a paisagem nem a arquitetura local. Os que amam seus prédios gostam justamente dessa característica. Suas criações de muitas curvas e poucas cores parecem ter vindo de outro mundo – de uma imaginária “niemeyerlândia” – para, com sua originalidade, ensinar o olho humano a enxergar as cidades de um jeito diferente. É exatamente esse o pensamento tão caro à arquitetura do século XXI. O Museu Guggenheim de Bilbao, projetado por Frank Gehry, proporcionou um cartão-postal a uma cidade espanhola que não tinha nenhum. A estação de trem de Lisboa, criada por Santiago Calatrava, trouxe uma feição contemporânea a uma cidade com a marca do Marquês de Pombal. A liberdade usada por Niemeyer para interferir nas cidades libertou a criatividade – e o ego – da brilhante geração de arquitetos que veio depois.
É difícil saber em que momento de sua vida longa Niemeyer começou a ser Niemeyer. Uma data provável é o ano de 1942, quando o prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, encomendou ao então jovem arquiteto um conjunto de edifícios para circundar a lagoa artificial da Pampulha. Niemeyer projetou um conjunto que já apresentava as formas sinuosas que caracterizariam sua obra. Dali para a frente, nada se tornou mais típico da capital de Minas do que o Conjunto Arquitetônico da Lagoa da Pampulha. Grande parte da vida e da obra de Niemeyer, a partir de então, passou a ser exatamente isso: semear cartões-postais pelo Brasil e pelo mundo.
Apesar de sua obra inspirar a arquitetura contemporânea, Niemeyer é homem de um tempo e de uma escola. Seu século e pouco de vida se concentra no século XX, e sua diretriz estética é o modernismo. Sua visão do modernismo, no entanto, é muito particular – e, por isso, inspiradora para os arquitetos de hoje. Nas palavras de Foster: “O modernismo ensina que a forma segue a função. Niemeyer mostrou que, quando a forma é capaz de criar beleza, a beleza se torna funcional e também fundamental em arquitetura”. Niemeyer foi um dos poucos arquitetos do mundo a ter a oportunidade de “criar beleza”, como diz Foster, em larga escala, ao projetar uma cidade inteira: Brasília. Diz-se que Brasília é árida, que seus prédios não têm escala humana, que não é fácil morar neles. O impacto que a cidade provoca é, no entanto, indiscutível. Chegar pela primeira vez a Brasília, vale novamente a comparação, é como aterrissar em outro planeta.
A influência exercida por Niemeyer não significa uma aceitação tranquila. Seu trabalho foi questionado no passado pela pretensão e ainda hoje é criticado pela funcionalidade precária. “A obra de Niemeyer se insere nos marcos dos tempos heroicos do modernismo, que dá privilégio à forma, e pensa a obra como algo para ser apreciado por espectadores, e não usado por atores”, diz o professor de arquitetura Frederico Flósuclo, da Universidade de Brasília. Essa preocupação com o que é visto de fora muitas vezes resultou em espaços internos com problemas de iluminação, ventilação, dificuldade para mobiliar e dispor objetos. O Museu de Arte Contemporânea de Niterói não tem lugar para guardar o acervo. Outra obra que provoca controvérsia é o Museu Histórico de Brasília, construído em 2006. O prédio em forma de cúpula fica selado e enterrado numa praça cimentada. Isso provoca problemas climáticos em seu interior. Niemeyer também foi atacado por receber encomendas sem licitação, especialmente em Brasília. Além de seu notório saber, que lhe daria vantagens sobre os demais, há uma portaria segundo a qual novas edificações poderiam ser diretamente pedidas apenas a ele e a Lúcio Costa, que morreu em 1998. Com isso, o escritório de Niemeyer foi acusado de intermediar interessados em construir sem ter de passar por concorrências.
Nenhuma das controvérsias em torno de Niemeyer mascara um fato objetivo: entre os artistas brasileiros do século XX, ele é um dos três que podem ser chamados de gênio, ao lado dos músicos Heitor Villa-Lobos e Antônio Carlos Jobim. É também o responsável por tornar a arquitetura, arte sem tradição no Brasil, algo “pop”, uma linguagem discutida e apreciada por todos – contribuição cultural inestimável. O melhor jeito de entender a revolução de Niemeyer é mesmo por suas obras, retratadas a partir da página 52 pelas lentes do fotógrafo Cristiano Mascaro. E do exame de sua incrível trajetória de vida, esmiuçada a partir da página 62, narrativa que tem Brasília como vértice. Vale citar novamente Norman Foster: “Brasília não é uma cidade projetada. Seria mais correto dizer que é coreografada. Cada um de seus prédios, de composição fluida, parece a imagem congelada de um bailarino num instante do espetáculo”. Niemeyer mostrou ao mundo que arquitetura é ritmo, arte, movimento – e o mundo aprendeu a dançar a música de concreto criada por ele.
Revista Época
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