13/02/2013

Irmã Imêlda: um exemplo de vida dedicada a Deus e aos pobres


Quem a conhece diz que é uma senhora delicada, de fala mansa e gentil. Por trás da doçura, avisa os amigos, o interlocutor encontra um coração valente e uma mente afiada que dedicou sua vida a Deus e à defesa dos pobres. Irmã Imêlda Lima Pontes, 92 anos, freira da Congregação das Filhas do Coração Imaculado de Maria desde 27 de maio de 1945, construiu uma história peculiar para uma religiosa. Assumidamente feminista e socialista, a freira achou no trabalho social desenvolvido no Instituto Penal Feminino, na década de 70, outra vocação: a defesa dos direitos dos pobres.

Alfabetizando as internas do presídio, Ir. Imêlda se deparava com uma realidade sofrida e amarga. Ela enxergava no rosto de suas alunas um envelhecimento precoce, que sintetizava não apenas a ação natural do tempo, mas a chaga social que já estava inflamada no Brasil. Numa entrevista concedida ao “DN Jornal dos Bairros” (no arquivo pessoal da assistente social Maria do Socorro Porto, o recorte com a matéria não tem a data da publicação), a religiosa contou que as mulheres pediam orientações e encaminhamentos nos seus processos. “Fluiu daí o meu interesse em estudar a fundo as formas e mecanismos de defesa”, explicou a freira ao periódico.

A luta por justiça então ganhou mais um capítulo. Ir. Imêlda ingressou, aos 41 anos, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC).   O período não poderia ser mais delicado. O ano era 1970, época em que o país digeria a força a ditadura militar.  Imagine a situação de uma freira socialista, feminista, caridosa e disposta a aprender as leis para poder enfrentá-las num contexto repressor. A mulher que nunca abriu mão de seu hábito, apesar das adversidades, ficou para lutar. Formou-se em 1974 e direcionou seu trabalho a causas penais. Acredita-se que ela foi a primeira religiosa e advogada criminalista do país. A Irmã vai mais longe. “Acho que sou a única freira criminalista no mundo”, afirmou ela ao jornal Diário do Nordeste, em 17 julho de 1999.

Imêlda defendeu e ganhou muitas causas, grande parte de homicídios. Na sua carreira no Direito buscou defender mulheres, pois foi justamente o sofrimento delas que a motivou a estudar os mecanismos da Lei. Entre os casos mais célebres, a freira destaca o julgamento de Coquinha, cujo nome real ela não consegue mais lembrar. A advogada conseguiu absorver a ré que matara outra mulher, alegando legítima defesa. “Aplicamos a tese de legítima defesa, chamando a atenção para o amor materno e o fato da vizinha ter vindo matá-la em sua própria casa. (...) Os jurados votaram unanimemente pela absolvição. Foi um delírio! Os colegas presentes nos cumprimentaram. Coquinha volta para casa liberta”, relata Ir. Imêlda no seu livro “O Marginalizado é Gente”.

Durante sua vida, muitos a questionaram. Não seria incoerência uma freira que deveria defender os mandamentos de Deus – “não matarás” – advogar em favor de pessoas que cometeram o crime de homicídio? O argumento da religiosa veio na entrevista concedida ao Jornal do Comércio de Manaus, em julho de 1975. “Defendo o ser humano! Defendo a criatura de Deus e não o criminoso. O homem possui uma dignidade inestimável e o crime, por mais nefando que seja, não o faz perdê-la”, declarou.

Dipaz
Em 1975, abriu um escritório, em parceria com o advogado Mauriti Lucena, com o objetivo de atender pessoas sem condições de arcar com os custos de um advogado. A iniciativa filantrópica somava com o projeto que já havia iniciado em 1973, o Departamento Direito e Paz (DIPAZ), cuja premissa é prestar atendimento social e jurídico aos pobres.

No livro de sua autoria, “O Marginalizado é Gente”, de 1998, Irmâ Imêlda relata muitos casos que atendeu através do Dipaz. Nele é possível enxergar, através dos olhos da religiosa, a extensão do sofrimento trazido pelas injustiças sociais do Brasil. “Quem dera nós nos juntássemos contra a miséria dos excluídos de uma sociedade pobre, que enriquece à custa dos miseráveis”. (Ir. Imêlda – Mendigo em último grau – do livro “O Marginalizado é Gente”).

O “Direito e Paz” começou suas atividades numa sala no Convento das Irmãs do Coração Imaculado de Maria, que ficava no centro da cidade. Todos os dias, desde as quatro ou cinco da manhã, as pessoas faziam fila na entrada do Convento, alguns vindos em uma árdua jornada do empoeirado interior do Ceará.

Trabalhando com dois colegas, um advogado e uma contadora, o trabalho da Irmã Imêlda está localizado em orientação jurídica, isto é, ajudar as pessoas a encontrar seus direitos, os documentos que precisam e como obtê-los. Como em muitos países, seguridade social, pensões e benefícios por doenças estão rodeadas por uma burocracia confusa. O emaranhado de documentos e a ineficiência das repartições públicas são um intransponível obstáculo aos pobres que tentam obter o que é deles por direito.

O “Direito e Paz” também dá consultas sobre Direito Rural e problemas legais comunitários. Embora muitos casos possam ser resolvidos amigavelmente, alguns inevitavelmente acabam nos tribunais. Os processos são geralmente longos e recheados de interrupções, então irmã Imêlda se restringe a dez casos por vez e estes só são aceitos quando o cliente não pode pagar um advogado particular. (Reportagem de Jill Bidie sobre os projetos apoiados pela Oxfam, visitados por ele durante uma turnê no Brasil).

Ao longo do tempo, o trabalho do Dipaz foi se pulverizando, mas nunca minguou completamente, assegura a assistente social Maria do Socorro Porto, amiga de Ir. Imêlda e atual vice-presidente da instituição. Hoje, a freira está com a saúde fragilizada, internada em um hospital da cidade, mas as lições que deixou na sua história continuam inspirando quem a conheceu.

Atualmente, o Dipaz, sem sede, é representado pelo cardiologista e clínico geral, Carlos Efrem Lustosa (presidente da instituição), a assistente social Socorro Porto, a advogada Leda Rodrigues e pela professora Conceição Rodrigues, além de uma rede de voluntários que ainda comunga dos ideais da nossa advogada dos pobres. O corpo diretor da entidade luta para reativar uma sede para o Dipaz, por entender que o trabalho iniciado por Ir. Imêlda, na década de 70, é fundamental para a construção, embora vagarosa, de uma sociedade que seja mais justa para os pobres.

“Sonho com um Ceará cheio de paz que tranquiliza, de esperança que reconforta, de amor que constrói e planifica. Vamos sonhar juntos?”. (Ir. Imêlda na mensagem final do livro “O Marginalizado é Gente”).

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