Terminada a leitura deste domingo do Evangelho de São João, em que Jesus deixa aos seus discípulos o mandamento novo do amor, não podemos deixar de nos interrogar sobre o que temos feito com este mandamento, como o temos vivido, ou não. Afinal porque se torna tão difícil viver um mandamento que parte de uma realidade tão simples, tão básica e essencial a cada um de nós, como é a necessidade de amar e ser amado?
Para compreender um pouco esta dificuldade, a nossa dificuldade, é bom que tenhamos presente a única pessoa que é identificada neste texto do Evangelho que lemos, e a sua história e relação com Jesus, Judas.
Neste sentido é bom recordar a atitude de Judas em Betânia quando todos festejam o regresso de Lázaro à vida e a sua irmã Maria derrama nos pés de Jesus um frasco de perfume de nardo puro e de alto preço.
Se para Judas é um desperdício, um valor que podia ser aplicado para matar a fome aos pobres, para Jesus é um gesto de amor, um gesto de pura gratuidade, que Judas não é capaz de apreciar nem de compreender. É um gesto certamente exagerado, extravagante, mas para quem ama verdadeiramente nada é suficientemente bom para oferecer àquele que se ama.
Nesta biografia evangélica de Judas não podemos também deixar de ter presente os gestos que precedem estas palavras de Jesus sobre o mandamento do amor, e que são a lavagem dos pés aos discípulos e a oferta do pedaço de pão embebido no molho do prato de Jesus.
No momento da lavagem dos pés aos discípulos Judas está ainda presente, e segundo São João Crisóstomo é a ele que Jesus lava os pés em primeiro lugar. Apesar da traição que já germinara no coração de Judas, e que o Mestre conhecia, Jesus não tem qualquer vergonha em se humilhar e lavar os pés ao traidor, oferecendo na sua humildade a mesma oportunidade de participação no mistério redentor que Pedro por pouco também não perde com a sua teimosia.
Por outro lado temos a oferta do pedaço de pão, gesto identificador do traidor para o discípulo amado, mas igualmente de predilecção por aquele que já se tinha encerrado na sua incapacidade de amar e compreender o amor radical de Jesus, pois de acordo com a etiqueta social da época e do médio oriente oferecer um pedaço de pão molhado no prato do anfitrião era uma manifestação de atenção, de consideração por aquele a quem se fazia tal oferta.
Face a estes acontecimentos da história relacional de Judas com Jesus não podemos estranhar que só depois da sua saída da sala, só depois do abandono da refeição com Jesus, este pudesse apresentar o mandamento novo do amor, a nova realidade que Judas já se mostrara incapaz de viver e de acolher.
De facto, a história de Judas mostra-nos a incapacidade de aceitar e compreender a gratuidade do amor, a gratuidade do dom que se entrega sem esperar qualquer recompensa; a humildade do amor, que é capaz de chegar ao serviço daquele que atraiçoa; e a perseverança do amor, que não desiste e até ao último momento não deixa de oferecer uma oportunidade.
E porque Jesus sabia que a incapacidade de Judas era de certa forma extensiva aos outros discípulos, só depois de lhes mostrar pelo exemplo e pela experiência o que queria deles é que lhes entrega o mandamento novo do amor. O mandamento novo do amor é a síntese de tudo o que eles tinham testemunhado e experimentado.
Síntese que Jesus não deixa de modular, de alguma forma de estratificar, para que se possa perceber que o preceito de nos amarmos uns aos outros não é uma realidade fechada, encerrada, mas pelo contrário dinâmica e expansiva.
Assim, Jesus parte da nossa necessidade mais básica, pedindo que nos amemos uns aos outros, pedindo que saibamos oferecer e partilhar o dom do amor com total gratuidade. O nosso amor humano, a nossa necessidade afectiva, necessitam ser desenvolvidos, e de uma forma livre e sem compensações.
Num segundo momento, ou plano, Jesus convida-nos a amar da mesma forma como ele nos amou, ou seja, de uma forma humilde e prestável, acolhendo o outro na sua diferença e até na sua oposição. Apesar da traição ou das desilusões o nosso amor não deve desistir da participação do outro, da possibilidade do outro acolher o nosso amor.
Desta perseverança, desta luta humilde pelo amor, deriva a última dimensão do mandamento do amor de que fala Jesus, a dimensão testemunhal, ou seja a possibilidade de despertar nos outros o amor, a consciência da filiação divina, através do nosso amor gratuito, humilde e serviçal.
Se todos os dias chocamos com a dificuldade de viver o mandamento de nos amarmos uns aos outros tal como Jesus nos mandou, é certamente porque nos nossos corações há ainda muito do discípulo Judas, muita incapacidade para compreender a gratuidade do amor sem medida, muita incapacidade para aceitar a urgência da humildade nos nossos gestos amorosos, muita incapacidade para continuar a insistir, para ser perseverante quando tudo parece convidar a desistir.
Peçamos ao Senhor a graça de renovar em cada dia e em cada circunstância o nosso amor primeiro, ele que nos deixou a promessa de renovar todas as coisas, para que possamos verdadeiramente e em plenitude viver o seu mandamento novo do amor.
Ilustração: “Cristo despedindo-se dos Apóstolos”, Duccio, Museo dell’Opera Metropolitana del Duomo, Siena.
Publicada por Frei José Carlos Lopes Almeida, OP
Vitae Fratrum Ordinis Praedicatorum
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