Adoramos reclamar da saúde no Brasil. Não faltam justificativas para isso, mas para avançar é preciso ter consciência do tamanho do desafio coletivo e assumir as responsabilidades individuais.
Que estilo de vida é esse que escolhemos viver? O Brasil é uma nação em desenvolvimento, mas importou os hábitos de comportamento e consumo dos países ricos. Subir na vida, para a maioria da população, é comprar carros com direção hidráulica e ar-condicionado e encher a casa de outras facilidades que poupam esforços e impedem o gasto calórico.
Comer virou diversão, mas parece que só vale a pena sair de casa se for para comer muito. Fast food cinco vezes por semana. Rodízios de carne e pizza. Esses e outros templos de esbórnia e desperdício. Shopping é o destino das famílias. Comer um pouquinho mais, comprar, ir ao cinema...
Para acompanhar a importação total dos hábitos americanos, a função das salas de projeção mudou. Cinema virou o lugar bizarro onde 300 pessoas se reúnem para falar alto e devorar baldes de pipoca e coca-cola.
A consequência dessas escolhas não poderia demorar a aparecer. Estamos gordos, sedentários e doentes como os americanos. Mas não somos um país rico como os Estados Unidos. Quem vai pagar a conta?
Além de tratar as pragas provocadas pelos maus hábitos (câncer, doenças cardiovasculares, diabetes etc), o Brasil convive com doenças superadas pelos países ricos nos anos 60. É o caso da diarreia (provocada por falta de saneamento básico), da tuberculose e da hanseníase.
O dinheiro gasto com saúde no país (cerca de 8% do PIB) é comparável aos valores que as nações desenvolvidas gastavam nos anos 80. É pouco. A inflação na área da medicina é muito maior que a do tomate. Por isso, a França gasta em saúde cerca de 11% do PIB e os Estados Unidos 15%. Gastamos pouco e gastamos mal.
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Nosso cobertor é curto, mas queremos ter acesso a todos os recursos de saúde do século XXI. Queremos os exames mais sofisticados. Queremos as “pílulas mágicas”. Ao contrário do que dizem os manuais de autoajuda, querer nem sempre é poder.
O tratamento das doenças não-transmissíveis (causadas principalmente pelo tabagismo e outros maus hábitos) está ficando insustentável nos países ricos. Imagine na América Latina...
Um relatório contundente foi divulgado hoje num evento organizado em São Paulo pela revistaLancet Oncology. Um grupo de pesquisadores de câncer de 12 países alerta a América Latina sobre um impasse no enfrentamento da doença.
A incidência de câncer ainda é maior nos países desenvolvidos, mas na América Latina a doença mata mais. A cada 22 casos de câncer nos países latino-americanos, ocorrem 13 mortes (59%). Nos Estados Unidos, morrem 13 pessoas a cada 37 casos (35%). O Brasil está no meio do caminho: a cada 29 casos, 13 mortes, segundo dados de 2008.
Segundo o trabalho, o tratamento médico de cada novo caso de câncer custa ao Brasil US$ 8,04. Essa é uma média que demonstra o quanto o acesso à saúde é mal distribuído e injusto no país. Enquanto a maioria dos pacientes de câncer sequer consegue agendar uma consulta, outros processam o governo e recebem tratamento de milhares de reais por ano.
O Brasil gasta menos que vizinhos sul-americanos, como Chile (US$ 15,09) e Uruguai (US$ 26,63) e muito menos que os EUA (US$ 460,17 por indivíduo diagnosticado).
Numa resposta publicada no mesmo relatório, o Ministério da Saúde informa que ampliou em 26% o investimento na assistência oncológica nos últimos dois anos. Em 2012, os gastos chegaram a R$ 2,4 bilhões.
“Não se trata apenas de aumentar o dinheiro gasto com câncer no Brasil. É preciso distribui-lo melhor”, diz o coordenador da pesquisa Paul Goss, da Universidade Harvard.“Há discrepâncias no atendimento em grandes centros urbanos e no interior do país, sobretudo com populações indígenas. É como se houvesse dois ‘brasis’”.
Quem mora no Brasil conhece bem esse termo. Existem dois “brasis”. E existem dois SUS: o que funciona e o que não funciona.
O SUS não é homogeneamente ruim. Ele é desigual e injusto. Uma pessoa que mora em São Paulo ou no Amazonas deveria ter o mesmo acesso aos recursos de saúde. Deveria conseguir realizar os mesmos exames, receber os mesmos medicamentos, ser orientado sobre como usá-los e como prevenir outros problemas de saúde. Como se sabe, isso não ocorre nem sequer dentro do mesmo município.
Instituições bem administradas, capazes de atender com dignidade milhares de pacientes pelo SUS e curá-los do câncer, existem na maioria dos Estados. Ainda assim, não são suficientes para atender à demanda.
O maior problema do tratamento do câncer é a falta de diagnóstico precoce. O cidadão percebe que há algo errado e procura o posto de saúde do bairro. Como essa rede básica é falha e desorganizada, ele perde um tempo precioso até conseguir acesso a um centro especializado na doença.
É fundamental que o Brasil ofereça atendimento precoce. Para que todos tenham direito ao mesmo tipo de assistência, a sociedade precisa assumir que não é possível oferecer toda e qualquer tecnologia a todos. Nem as nações mais ricas fazem isso.
Segundo o trabalho publicado na revista The Lancet Oncology, o fornecimento de novos medicamentos pode ser economicamente inviável para países em desenvolvimento.Mais de 90% dos medicamentos contra o câncer aprovados nos Estados Unidos desde 2004 custam mais de US$ 20 mil a cada três meses de tratamento.
Esse era um impasse anunciado. Há cerca de dez anos, tive a chance de entrevistar o hematologista Brian Druker num congresso de oncologia nos Estados Unidos. Druker havia desenvolvido o Glivec, um remédio que mudou a história da leucemia mieloide crônica. Pacientes que estavam à beira da morte voltaram a viver com muita qualidade.
O Glivec foi a primeira das chamadas “terapia-alvo”, drogas que combatem alvos moleculares específicos dentro das células tumorais. O remédio poupa a maioria das células saudáveis e, por isso, tem poucos efeitos colaterais.
É bem diferente da quimioterapia tradicional (que mata as células malignas e as saudáveis) e pode ser comparada a um tiro de canhão para matar uma formiga.
Aquele foi um momento de grande entusiasmo. Druker era cotado para o Nobel de Medicina pelo desenvolvimento da “pílula mágica”, como ela era tratada no título de um livro publicado pelo fabricante.
Nos anos seguintes, surgiram várias terapias-alvo para tratar outros tipos de câncer. Os esforços de marketing alimentaram falsas esperanças. A impressão geral era a de que em pouco tempo o câncer seria uma doença crônica e administrável. Graças a confortáveis “pílulas mágicas”.
O tempo passou e a magia não aconteceu. Embora sejam úteis, muitas dessas drogas deixam de funcionar depois de algum tempo. Ou prolongam a vida dos pacientes por dois ou três meses ao custo de milhares de dólares.
Nesta semana, Brian Druker e outros 120 especialistas de 15 países divulgaram um protesto contra os preços dos novos tratamentos. Ele foi publicado na revista Blood, da Sociedade Americana de Hematologia. Segundo o manifesto, “os preços das drogas são astronômicos, insustentáveis e talvez até imorais”.
No aspecto específico do acesso ao Glivec e de outras drogas modernas, o Brasil está melhor que os Estados Unidos. O Glivec é fornecido pelo SUS há alguns anos e recentemente passou a ser produzido pelo laboratório público Farmanguinhos.
Poucos países dispõem de um sistema público de saúde abrangente como o SUS – ainda que ele seja cheio de falhas e injustiças. Ele precisa melhorar e ser compatível com o nível de desenvolvimento que o Brasil atingiu.
Ao mesmo tempo, cada cidadão precisa assumir a responsabilidade pela própria saúde. Muita gente não quer abrir mão dos maus hábitos e reclama quando o governo toma medidas de restrição ao fumo ou de redução da gordura e do sal dos alimentos.
Para essas pessoas, o livre arbítrio é um bem maior. Algo que deve ser preservado e defendido com unhas e dentes, mesmo diante de uma ameaça à saúde pública. Eu poderia concordar com essa argumentação se os indivíduos arcassem integralmente com as consequências de suas escolhas.
Não é o que acontece. O sujeito fuma a vida inteira e, quando tem um câncer, quem paga o tratamento é o SUS ou o plano de saúde. Quem arca com o tratamento do fumante é a coletividade que paga impostos e a coletividade que sustenta os convênios. Quanto mais clientes fumantes, obesos, doentes e idosos um plano de saúde tiver, mais altas serão as mensalidades de todos. Dos que se cuidam e dos que não se cuidam.
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)
Revista Época
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