13/06/2013

Errei. Quem nunca?

Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV (Foto: ÉPOCA)Os comentários mais populares da semana passada giraram em torno do erro estampado em uma chamada na capa da Ilustrada, da Folha de S. Paulo, na edição de 7 de junho. Dizia o seguinte: “Superficial, O Grande Gatsby esquece o lado sombril da trama “. A chamada, além do neologismo “sombril”, mantinha aquele tom pretensioso de resenha negativa. O resultado do erro foi chamar atenção para a excelente resenha de Ricardo Calil – que não tinha nada a ver com assunto, nem mesmo escreveu a palavra maldita que provocou gargalhadas na imprensa e nas redes sociais. Certamente o redator que fez a chamada foi advertido e agora se sente o mais enxovalhado ser do mundo. Mas merece aplausos por nos tornar pessoas mais felizes.
Por isso, eu me solidarizo com ele, mas não tenho pena dele nem irei consolá-lo com aquela prédica edificante de sempre: errare humanum est, todos cometemos erros e, quando isso acontece, devemos assumi-los com tranquilidade, corrigindo-os o quanto antes. Esse tipo de sermão existe por causa da tradição entre os jornalistas de tentar enrolar o chefe para justificar uma falha. Os jornalistas costumam fechar os olhos para os erros. Quando não, gostam de se autoinfligir sacrifícios, com meas-culpas dilacerantes e constrangedoras. Um erro impresso, afinal, gera um fato marcante e não pode ser corrigido, a não ser pela errata na edição seguinte. Na internet , o erro quase deixou de existir, pois é mais fácil alterá-lo em tempo real.
Não quero subestimar os jovens autores de erros. “Sombril” é uma fonte sem precedentes de gargalhadas. Mas já vivi tempos gloriosos nesse gênero de falha humana. Sou do tempo em que Caetano Veloso apelidou o jornal em que trabalhava de “Falha de S. Paulo”. E tinha razão, pois cometíamos pecados imperdoáveis. Errei, sim. Quem nunca? Naqueles inícios de reportagens típicos do automatismo do “Projeto Folha” dos anos 80 e 90, apresentei Roberto Carlos como “o cantor e compositor carioca Roberto Carlos”. Nem preciso dizer que meu mundo caiu no dia seguinte. O vate de Cachoeiro de Itapemirim, o Rei, sendo chamado de “carioca” é absurdo! Ainda que desmoralizado e quase linchado, não deixei de sentir um certo prazer tanto em não saber onde meter a cara como notar que meu texto estava sendo lido por milhares de leitores furibundos.
Nos tempos em que a Ilustrada era uma espécie de “Ipanema de proveta”, como a definiu Caetano Veloso, incorremos em tremendos enganos. Uma colega muito querida e inteligente chamou o militante negro americano Malcom X de Malcom 10, porque o Manual da Folhaproibia os números romanos! O caso mais clássico do final do século XX foi quando um belo dia o meu saudoso amigo Daniel Piza me sussurrou, com expressão constrangida, que sua matéria recém-publicada informava que Jesus Cristo havia sido enforcado. “Daniel, a gente comete erros”, tentei consolá-lo. “Não há o que fazer. Mas acho que você acaba de entrar para a história do jornalismo.” No dia seguinte, aFolha trazia o Erramos mais retumbante de que tenho notícia: “Diferentemente do que publicamos ontem na Ilustrada, Jesus Cristo foi crucificado”. Esse erro marcou a vida e a posteridade de Daniel Piza. Ele não gostava de lembrar o episódio. Mas acho que sentia uma pontinha de orgulho pelo ato falho, cometido por seu proverbial excesso de confiança. Tornou-se uma espécie de marca d’água em tudo o que faria doravante, logo ele que era um perfeccionista do texto.
Folha daqueles anos de rebeldia de proveta constituiu um celeiro de falhas cavalares. Mas aqui em ÉPOCA também cometemos as nossas, e não menos divertidas. Em uma grande reportagem de capa sobre violência contra os gays, publicada três anos atrás, um colega conhecido pelo extremo rigor e precisão deixou escapar esta: “Oscar Wilde, o genial autor deAlice no País das Maravilhas”. Claro que a correção foi parar no “Fomos mal” da revista, já que Wilde é o genial autor de O rerato de Dorian Gray e Lewis Carroll, o de Alice. Eu também fui bem mal no ano passado. Estava tão entusiasmado com a chegada de Paul McCartney ao Brasil que escrevi, com toda convicção, que Ringo Starr havia “lotado o estádio do Morumbi” - quando, na verdade, ele tinha lotado o bem mais modesto Credicard Hall. Quem mandou não ter ido ao show e ter se fiado na memória sem ter ido ao Google? Eu próprio ri do meu erro, devidamente informado em errata na edição seguinte. Ringo devia me agradecer.
Vou tentar sintetizar minha reflexão sobre o tema. Um erro pode ser definido como uma excrescência que possui um autor, uma assinatura, diferentemente de tantos outros dejetos produzidos pelo ser humano. Eis a sua maior característica: o responsável por errar aparece cedo ou tarde: ele confessa ou é traído. Quanto mais tememos um erro, mais ele bate à nossa porta – e mais o filho da mãe nos denuncia.
Talvez seja essa a razão de muita gente - e os jornalistas em especial - gostar, no fundo, de cometer erros. Para o escritor faminto de glória, é uma maneira de ficar na boca do povo. Como dizia a vedete e encantadora de serpentes Luz del Fuego: “Falem mal mas falem de mim”. Um erro é uma infâmia de certo modo consagradora.
É por isso que, por um mecanismo qualquer de defesa, os jornalistas sentem uma compulsão inconsciente de cometer erros mais que o resto da humanidade. Talvez a trangrasseão faça bem a seus egos sadomasoquistas, pois são apanhados no flagrante do excesso de trabalho, de autoestima ou de autoengano. O prazer de errar é legítimo. Como diz o ditado popular que acabo de forjar: se não fosse bom, ninguém errava.
(Luís Antônio Giron escreve às quintas-feiras.) 
Revista Época

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