Cabe a nós, leigos e leigas – e especialmente teólogos e teólogas - debater os temas complexos e controvertidos e elaborar uma nova teologia do corpo e da sexualidade, a partir de uma prática concreta, iluminando as decisões a serem tomadas dentro de contextos específicos.
O papa entre os fiéis, na JMJ: por uma nova teologia do corpo.
Por Lúcia Ribeiro
Pensando ainda na bela experiência que vivemos no Rio de Janeiro, com Francisco, veio-me à cabeça o título de uma coletânea sobre a visita de João Paulo II ao Brasil, nos idos de 80, ao país: “O povo e o papa”. Como soe acontecer, essa gerou, na época, um entusiasmo imenso e uma reação popular que raiava a uma “papolatria” explícita; reagindo a isto, Luiz Alberto Souza, organizador do livro, fez questão de colocar no título, em primeiro lugar, o povo, sujeito da história, para analisar o contexto em que se deu sua relação com o papa.
Hoje a situação é, em muitos aspectos, diferente: Francisco – verdadeiro dom de Deus – não é João Paulo II. Mas exatamente porque sua pessoa se tornou quase uma unanimidade – o título da crônica de Luis Viegas, “deslumbrando” , sintetiza bem esta atitude – não quero voltar a repetir o que já foi dito. Até porque as análises – embora excelentes algumas - ao centrar-se prioritária, quando não exclusivamente, sobre seus discursos, seus gestos, o que disse e o que não disse, não deixam de implicar o risco de recair, ainda que inconscientemente, em um certo tipo de culto da personalidade.
Por isso, embora também feliz com o papa, gostaria de focar no outro extremo, ou seja, no povo que o recebeu. Foi uma multidão de 3 milhões, que se reuniu em Copacabana, com um entusiasmo e uma alegria contagiantes, trazendo uma dimensão de paz e transformando um bairro, permanentemente às voltas com seus problemas e contradições, num lugar acolhedor e aberto, onde, nestes dias, praticamente não houve violência nem vandalismo; a proporção de furtos, por exemplo, foi mínima, em relação ao tamanho do evento.
Por sua vez, todo o ritual que ali se desenvolveu foi muito bem organizado e teve momentos de profunda beleza, como alguns trechos da Vigília ou a Missa final. Entretanto, as formas de que se revestiu indicava um estilo próprio de catolicismo, fazendo pensar num clima pré-Vaticano II: a praia inundada de confessionários, a benção do Santíssimo, o Pai-nosso – oração comunitária por excelência - cantado em latim apenas por um pequeno coro ou por um(a) único(a) cantor(a), a pouca participação ativa dos jovens como protagonistas...
Na realidade, nem se poderia esperar outra coisa: tais formas refletem a própria estrutura das jornadas e a orientação dos grupos que as organizaram. Foi esta linha que apareceu como representativa da Igreja brasileira, neste contexto, quase como um "pensamento único".
A visibilidade de "um outro jeito de ser igreja" foi mínima, para não dizer inexistente. Embora tenha sido organizada a “Tenda das Juventudes", onde houve palestras, debates e celebrações, esta estava localizada no bairro de Higienópolis, na zona norte do Rio, muito longe do centro do megaevento e com pouca repercussão.
Esta ausência foi constatada também por Ivone Gebara, que afirma: “há outro rosto do cristianismo que quase não pode se manifestar na Jornada. O cristianismo que ainda inspira a luta dos movimentos sociais por moradia, pela terra, pelos direitos LGBT, pelos direitos das mulheres, das crianças, dos idosos etc. O cristianismo das comunidades de base (CEBs), das iniciativas inspiradas pela Teologia da Libertação e pela teologia feminista da libertação. Estes, embora presentes, foram quase sufocados pela força daquilo que a imprensa queria fortalecer e, por conseguinte, era do seu interesse.”
Creio que este fato merece uma reflexão mais profunda. Até que ponto reflete uma falta de espaço ou mesmo a recusa de uma abertura a estes setores? Ou, como indica Ivone, a falta de interesse da mídia para divulgar o que fazem? Ou até mesmo – como no caso das pequenas comunidades que tentam ser semente de uma nova forma de viver o Evangelho, na época atual – representa a opção de não participar de um evento como este? Ou trata-se simplesmente de reconhecer que hoje, na Igreja brasileira, estes setores - “minorias abraâmicas” de que falava D. Hélder - são realmente minoritários?
Certamente não há que imaginar um duelo na Igreja para ver quem ganha ou qual o setor mais influente. É evidente que, enquanto instituição humana, não é possível negar, em seu interior, a existência de uma luta política. Mas não se pode, de forma alguma, esquecer seu caráter essencialmente religioso. E nesta linha o fundamental é resgatar a ideia de uma Igreja pluralista, que afirma a unidade a partir da diversidade, numa atitude de respeito às diferenças e de diálogo permanente. “Na casa de meu Pai há muitas moradas”, já disse Jesus. (Jo, 14, 2).
Há também um outro ponto a ser destacado. No kit dos peregrinos, constava um “Manual de Bioética” que foi distribuído para todos. Embora abordando os temas mais candentes da realidade atual neste campo - pílula do dia seguinte, casamento gay, aborto, eutanásia - o manual se pauta pela linha tradicional do discurso oficial a respeito. Não sei a repercussão que teve entre os jovens. Pode-se pensar que talvez boa parte deles siga o padrão que vem se tornando usual na Igreja, assumindo na prática comportamentos diferentes dos prescritos e confirmando o hiato existente entre doutrina e prática; tal hiato, aliás, configura hoje, em relação ao campo moral, um verdadeiro ”cisma submerso”, na expressão de Pietro Prini.
Uma pesquisa recente, realizada pelo Ibope Inteligência, entre maio e junho deste ano, com 4.004 pessoas em todo o país, aponta para esta perspectiva: entre os 58% dos jovens – que se declararam católicos – 82% apoiam a pílula do dia seguinte e 56% a união de pessoas do mesmo sexo. Aliás, estes dados apenas confirmam o que pesquisas anteriores, realizadas ainda nas décadas de 80 e 90, (Ribeiro, Rosado Nunes, Machado, Pierucci) já vinham afirmando.
Por sorte, Francisco não explicitou nenhuma condenação a estes temas considerados “congelados”. Pelo contrário, abriu algumas janelas, ao referir-se aos gays e ao exemplo das mulheres paraguaias. E seu silêncio, como bem indica Luiz Alberto, pode ser considerado “libertador”. Isto significa que não cabe ao Papa especificar detalhes do que é ou não legítimo, neste campo, mas sim apontar as grandes linhas e os grandes princípios, que deverão concretizar-se em contextos e circunstâncias precisas. E aí abre-se o espaço para o exercício da liberdade dos filhos de Deus.
Cabe a nós, leigos e leigas – e especialmente teólogos e teólogas - debater estes temas complexos e controvertidos e elaborar uma nova teologia do corpo e da sexualidade, a partir de uma prática concreta, iluminando as decisões a serem tomadas dentro de contextos específicos; isto traria elementos para um permanente “aggiornamento” da doutrina, levando a diminuir o hiato entre doutrina e prática. (Talvez seja mesmo impossível chegar a eliminá-lo completamente, já que o exercício da norma supõe sempre, em maior ou menor grau, a possibilidade da transgressão).
E neste campo soa quase como uma ironia que um dos únicos pontos que é unanimemente condenado tanto pela doutrina da Igreja como pelas leis da sociedade e onde não deveria existir hiato entre doutrina e prática – a pedofilia e o abuso sexual –seja justamente a norma que foi, no passado recente, não só transgredida por alguns clérigos como frequentemente encoberta...
Instituto Humanitas Unisinos
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