01/02/2014

'A Menina que Roubava Livros' mantém essência do bestseller no cinema

Por Nayara Reynaud

São Paulo - “Quando a Morte Conta uma História, você deve parar para ler” - e pode parar para assistir. Parafrasear o slogan do best-seller “A Menina que Roubava Livros”, que vendeu mais de 2 milhões de exemplares no Brasil e mais de 8 milhões pelo mundo, é a melhor maneira de descrever o resultado da adaptação cinematográfica homônima desse fenômeno literário.

Ainda que a narrativa audiovisual não apresente a mesma desenvoltura da Morte como narradora do livro do australiano Markus Zusak, o filme é instigante.

Para a satisfação dos leitores, “A Menina que Roubava Livros” (2013), de Brian Percival, também traz, ainda que de forma mais discreta, a “ceifadora de almas” narrando a história de Liesel Meminger (Sophie Nélisse), a menina que despertou sua curiosidade quando foi buscar o irmão dela, morto em um vagão de trem na Alemanha nazista.

Os dois eram levados pela mãe, perseguida por ser comunista, para serem cuidados por um casal de meia-idade: Rosa (Emily Watson) e Hans Hubermann (Geoffrey Rush). No entanto, só chegam à rua Paraíso – tradução feita para a rua Himmel do original –, Liesel e o “Manual do Coveiro”, guia roubado pela garota durante o funeral do irmão, na primeira manifestação de sua bibliocleptomania.

Curiosamente, a menina, então com 10 anos de idade, ainda não sabia ler, fazendo com que o carinhoso pai se esforce para ensiná-la. Saboreando o prazer da descoberta das palavras, ela não se furta da paixão pelos livros e continua a desfrutá-los e adquiri-los ilegalmente, sob os olhos e até a conivência do seu melhor amigo Rudy (Nico Liersch) e de Ilsa Hermann (Barbara Auer), esposa do prefeito da cidade.

A mulher é uma das clientes de Rosa, que lava e passa roupas para ajudar no sustento da família, já que o marido não consegue mais trabalho por não ser filiado ao Partido Nazista. Mesmo assim, os dois não medem esforços para abrigar e esconder, mesmo durante o auge da 2a Guerra Mundial, o judeu Max (Ben Schnetzer), filho de alguém a quem Hans deve muito.

Para transformar as quase 500 páginas do livro nas mais de duas horas de filme, o roteirista Michael Petroni – responsável por “As Crônicas de Nárnia: A Viagem do Peregrino da Alvorada” (2010) – alterou a ordem dos acontecimentos, omitiu algumas passagens e inflou um personagem, atribuindo-lhe ações de outros que foram suprimidos do script.

Os fãs xiitas possivelmente reclamarão das mudanças, mas elas são necessárias em qualquer adaptação, pois se trata de outra linguagem. Talvez só uma minissérie seria capaz de abordar todas as subtramas e detalhes da narrativa literária.

Das alterações realizadas, a mais interessante é a troca de “Dar de Ombros” por “O Homem Invisível”, de H. G. Wells, como o livro roubado da fogueira, em uma irônica referência à entrada de Max no enredo.

As mais prejudiciais ao longa são a suavização no retrato dos horrores da guerra e a moralização excessiva ao omitir que Liesel e Rudy roubavam outras coisas além dos livros. Todo esse esforço desnecessário foi feito para adequar a produção a uma classificação etária mais baixa.

Mesmo assim, pode-se dizer que Brian Percival, que já ganhou um Emmy por um dos episódios que dirigiu na série inglesa “Downton Abbey”, faz de tudo para honrar a memória dos leitores.

Entretanto, sua pouca experiência em longas para o cinema – só havia feito “A Boy Called Dad” (2009) – contribuiu para que o trabalho fosse tão conservador. Além de certa falta de ritmo em alguns momentos do filme, o diretor peca por não arriscar tanto quanto o autor Markus Zusak, que, usando seu lirismo, fez questão de revelar lampejos do destino final de seus personagens no decorrer do best-seller, com sua narrativa não-linear.

Abordar e até destacar o lado mais poético e humano da Morte, que costumava observar e descrever detalhadamente as cores do céu durante seu “serviço”, é um exemplo de outra ousadia que seria possível por parte da direção e da fotografia. Esta última é bem realizada por Florian Ballhaus e marcada pela sobriedade de tons, também presente na esmerada direção de arte. Outro destaque da elaborada produção é a trilha sonora de John Williams, que, apesar de soar melodramática em alguns momentos, traz o compositor mais inspirado do que nos trabalhos mais recentes, o que resultou na sua 49ª indicação ao Oscar e fez dele o maior recordista vivo neste quesito.

O elenco também está afinado. Emily Watson convence no papel da mãe adotiva ranzinza, que, entre seus xingamentos, demonstra preocupação com a garota, enquanto o carisma de Geoffrey Rush serve perfeitamente para o papel deste pai afetuoso. E a canadense Sophie Nélisse, estreante em Hollywood, segura bem a responsabilidade de dar vida a esta protagonista com uma boa interpretação, ainda que não tão impressionante quanto a da sua estreia em “O Que Traz Boas Novas” (2011), produção do Canadá que concorreu ao Oscar de filme estrangeiro em 2012. Além disso, ela e Nico Liersch fazem da relação de Liesel e Rudy algo muito próximo do que se imagina através das páginas do livro.

Apesar dos problemas e da sensação de que seu potencial não é totalmente explorado, o saldo ainda é positivo, porque a adaptação cinematográfica consegue emular um pouco da essência da obra literária.

Estão ali a importância da palavra quanto instrumento, paradoxalmente, de manipulação e de libertação, em especial na Alemanha nazista; a contradição do ser humano, capaz de praticar, ao mesmo tempo, atos de bondade e maldade; e o consequente sentimento expresso pela Morte e compartilhado pelo público, seja de leitores ou não, de pasmo e assombro em relação à humanidade.
Reuters

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