Dom Helder tinha características humanas cheias de humildade e delicadeza.
Em 12 de abril de 1964, há exatamente 50 anos, entrava na Arquidiocese de Olinda e Recife dom Helder Câmara: um homem que marcaria a história da Igreja brasileira e que, após seis anos na arquidiocese, The Sunday Times definiria como “o homem mais influente da América Latina, depois de Fidel Castro”.
A reportagem é de Gerolamo Fazzini.
A chegada a Recife deu-se poucos dias depois do golpe de 1º de abril, com o qual chegou ao poder o regime militar que dirigiria o país durante 20 anos. O então neo-arcebispo, que até esse momento era auxiliar do Rio de Janeiro, não demorou a denunciar os excessos dos militares, embora houvesse apoiado posturas conservadoras poucos anos antes.
Quando chegou a Recife, Câmara não quis ser recebido na catedral, mas na praça, no meio do povo. Marcelo Barros, abade beneditino e teólogo da libertação, colaborador de Dom Helder durante 12 anos, escreveu o seguinte na revista Nigrizia; “O arcebispo exortou dizendo: ‘no nordeste do Brasil, Jesus Cristo chama-se Zé, Maria e Severino. Tem a pele escura e sofre a pobreza’”.
Em seguida, acrescenta: “Dom Helder encontrava em cada irmão e irmã a presença divina. Manifestava esta convicção principalmente em relação aos mais pobres e marginalizados. Uma vez por semana, nos reuníamos em sua casa. Enquanto falávamos, muitas pessoas batiam à porta. Ele mesmo se levantava e as recebia. Às vezes se demorava, ouvindo-as. Dizia: ‘É importante recebê-las pessoalmente, porque não quero perder o privilégio de acolher o próprio Senhor’”.
Essas características humanas cheias de humildade e delicadeza, além da sua dimensão profética de defensor dos direitos humanos, fazem com que, 15 anos após sua morte, sua figura e sua mensagem sigam tendo uma forte atualidade e eloquência. Pude confirmá-lo pessoalmente há poucas semanas, quando visitei a Igreja das Fronteiras, em Recife, onde Dom Hélder viveu durante muitos anos, nos modestos aposentos que estão ao lado da Igreja.
Sua casa canônica foi transformada em museu. E mais que na catedral de Olinda, onde se encontra sua tumba, uma pequena multidão se reúne justamente ali cada domingo para visitar a casinha, com sua biblioteca (Guitton, De Lubac, Martin Luther King, Irmão Schutz, Garaudy...) e seu quarto, no qual ainda se encontra a rede multicolorida que usava para dormir.
No segundo andar há uma exposição permanente com os objetos que narram a intensa vida deste personagem. Câmara foi não apenas um dos protagonistas do Vaticano II, embora nunca tenha falado durante as sessões de trabalho (basta ler as cartas reunidas em “Roma, duas da manhã”), mas também uma das vozes mais autorizadas do mundo na denúncia das injustiças e do subdesenvolvimento. Como testemunham numerosos reconhecimentos internacionais, desde as medalhas até os títulos de cidadão honorário, passando pelos doutorados Honoris Causa.
Mas, entre todos os motivos pelos quais sua figura segue sendo tão familiar destaca-se sem sombra de dúvida esse sonho de “uma Igreja pobre e para os pobres” que tanto se parece com a Igreja que o Papa Francisco quer. Além disso, exatamente uma das frases pronunciadas pelo atual Sucessor de Pedro parece uma das de dom Helder Câmara. Bergoglio disse aos jovens belgas que o entrevistaram há alguns dias: “Ouvi uma pessoa que disse: ‘Sempre falando dos pobres! Este Papa é um comunista’. Não, esta é uma bandeira do Evangelho: a pobreza sem ideologia, os pobres são o coração do Evangelho de Jesus”. Muitos anos antes, o “bispo vermelho” (como os seus adversários o chamavam), usou uma expressão muito parecida: “Quando dou de comer a um pobre, me chamam de santo. Mas quando pergunto por que um pobre não tem comida, me chamam de comunista”.
Bete Barbosa, uma senhora de idade que faz parte do Instituto Dom Helder Câmara e se ocupa das publicações do “bispinho” (outro apelido, embora mais carinhoso, de Câmara), confirma: “Em muitas atitudes e palavras do Papa Francisco encontram-se tons semelhantes aos de dom Hélder. A começar pelo zelo com as pessoas, por suas necessidades”. Confirma-o também Luis Tenderini, italiano, mas naturalizado brasileiro há mais de 40 anos, e que foi o “braço direito” de Câmara na diocese e na Fundação Emaús Recife: “Do primeiro encontro pessoal com ele, em julho de 1979 (quando me convidou para colaborar na atividade pastoral), sempre me lembro do seu gesto final: ao terminar o encontro me acompanhou até o portão, e esperou até que desaparecesse da sua vista. Mais tarde descobri que fazia o mesmo com todos os que o visitavam. [...] Em dom Helder conheci um profeta com espírito de poeta; tinha o estilo tranquilo dos sábios e um coração imenso de pai e mãe, de pastor”.
Outro aspecto em que dom Hélder e Bergoglio se parecem é seu modelo franciscano: não de ecologista “new age”, nem de rebelde apreciado por publicitários, mas de autêntico homem de Deus. Nas cartas do bispo brasileiro há constantes referências ao santo de Assis. Pode-se ler em uma carta de 17 de setembro de 1964 o seguinte: “São Francisco nutria um profundo amor pela Igreja; foi um dos maiores inovadores que Deus suscitou; depois de Cristo e da Virgem, ninguém entendeu e amou os pobres como ele”.
Concluímos com uma alusão à semelhança espiritual com outro grande Papa, que será santo dentro de poucos dias: João XXIII. Entre o arcebispo de Recife e o Pontífice de Bérgamo houve um vínculo muito forte. Em uma carta de 1964, Câmara cita o episódio de um encontro com mons. Loris Capovilla, secretário de Roncalli: “Me abraçou quase chorando de alegria e comoção, e disse que poucos dias antes havia lido minha mensagem de chegada a Recife, ‘uma mensagem que o Papa João teria subscrito, feliz’”.
Vatican Insider
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