03/07/2014

Somos todos macacos?

  domtotal.com

Às vezes nos assemelhamos ao macaco de Kafka no seu conto Relatório para uma Academia.

Gilmar P. da Silva SJ*
Já se disse, com apoio em Darwin, que na luta entre as espécies sobrevivem os mais aptos. Isto é, aqueles que possuem características mais condizentes com os novos tempos que se lhes apresentam. Tal princípio aplicado às teorias sociais constituiu de uma terrível noção de que haveriam pessoas superiores e inferiores, mais ou menos evoluídas. O que serviu de justificativa ao Imperialismo, Fascismo etc.

Quando algum grupo estabelece um paradigma, como fator de coesão, tenderá a excluir os que não se referenciam por este. Trata-se de uma tentativa de salvaguardar a identidade do grupo que se entende como tal a partir do firmado. Mas toda identidade é construção, reconhecimento de que algo é o mesmo para além das mudanças que sofre. Consiste, com frequência, de uma perspectiva essencialista, da busca por aquilo que é fundamental e imutável, garantidor da identidade.  De acordo com essa visão,  faz-se necessário cuidar para que não hajam misturas. "Uma família se constitui de  pai, mãe e filhos. Qualquer outra forma de estruturação consiste em uma ameaça à sociedade e seus valores" - bradam uns. "Um absurdo! Essas minorias querem distorcer tudo. Onde está a democracia nisso? É uma ditadura feminaziafrogaycomunista!" - expeculam alguns. " Imagine! Serviram carne vermelha com vinho branco! Há-há-há!" - debocham outros. Um modo de configuração ou determinado aspecto de algo é tomado como essencial e não se admite outras possibilidades de arranjamento ou que uma característica específica falte.

Não obstante, o pior está numa espécie de síndrome de Estolcomo, na qual a vítima se liga afetivamente ao agressor. Anos de dominação européia fizeram com que se criasse um desejo de sair da condição de subserviência ao modo de se tornar como o colonizador, aquele que tem poder. Disso veio uma admiração exacerbada por tudo o que vem do hemisfério norte. Não de Portugal, que perdeu seu poderio, mas daqueles que lhe excederam, particularmente em colonização cultural. Nega-se a origem africana e ameríndia para buscar as raízes européias. Quem não quer o tal passaporte internacional? Inferioriza-se o Sul, exalta-se o Norte.

Não é só o desdém pelo perfume de priprioca em favor do Chanel nº 5. Tem a ver com a busca pelo namorado europeu na Copa do Mundo, com o absoluto da etiqueta francesa nas nossas mesas, com o fato de conhecermos pouco da América Latina, a obsessão com os currículos franceses... Há quem entenda que ser como a Europa seja a solução para os nossos problemas sem se dar conta da riqueza de nossa própria formação.

Às vezes nos assemelhamos ao macaco de Kafka no seu conto Relatório para uma Academia. Este fora capturado na África e se humanizou ao longo de 5 anos. O ex-símio descreve à academia o que se passou ao longo desse tempo e que lhe tornara um igual. O determinante para o salto evolutivo teria sido o estreitamento da jaula. Ele não buscava uma liberdade metafísica, mas somente uma saída da condição na qual estava. Com razão Kierkegaard chama a angústia (que no latim significa estreitamento) de vertigem da liberdade. Uma situação existencial diante do puro possível na qual não se pode apoiar nem no futuro nem no passado, mas se sente comprimido pelo presente. O macaco não podia nem se erguer, nem se sentar, está estreitado. Sua saída se dá em uma reinvenção de si. Torna-se humano, transmuta-se qualitativamente.

Relatório para uma academia será apresentado pelo ator Kimura Schetino, de quinta a domingo, no Cine Theatro Brasil Vallourec. A peça homônima ao texto de Kafka é dirigida por Eid Ribeiro e estará em cartaz de 14 de junho a 13 de julho. Um texto contundente para questionarmos o que significa, de fato, evoluir, se é que isso existe e não apenas mutações.

*Mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com pesquisa em Signo e Significação nas Mídias, Cultura e Ambientes Midiáticos. Graduação em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Possui Graduação em Filosofia (Bacharelado e Licenciatura) pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Experiência na área de Filosofia, com ênfase na filosofia kierkegaardiana. 

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