Por que não se divulgou antes que o informante condenado é transexual e quer virar mulher?
Bradley Manning: "Sou mulher". |
Por Maíra Kubík Mano*
Bradley Manning agora se chama Chelsea. O soldado estadunidense que vazou informações confidenciais de seu governo para o WikiLeaks e foi condenado a 35 anos de prisão declarou na semana passada que é uma mulher e que gostaria que se referissem a ela como tal, em desacordo com o sexo que lhe foi designado ao nascer, o masculino.
A informação já vinha circulando há algum tempo, mas só nos últimos dois dias foi divulgada amplamente pela grande mídia. A pergunta que não quer calar é: por que uma pessoa que tem sido exposta há tanto tempo pelos meios de comunicação e pela Justiça americana não teve, desde o início, a sua identidade de gênero respeitada? Por que o tempo todo se referiram a Manning com o sexo que lhe foi designado ao nascer e com o qual ela não está de acordo? O que isso nos diz sobre como nossa sociedade trata pessoas trans*?
Para tentar responder essas questões, entrevistei para o blog Hailey Kaas, transfeminista e pesquisadora em Linguística, Teoria Queer, Gênero e (Trans)Feminismo.
Eis a entrevista:
Há algum tempo circula a informação de que Manning seria uma pessoa trans*. Por que essa questão demorou tanto para ganhar as páginas dos jornais? O que isso diz sobre a visibilidade de pessoas trans*?
Primeiramente, as pessoas geralmente duvidam da “veracidade da transexualidade” se não for “atestada” por um médico. Por isso, as questões de autonomia das pessoas trans* em se identificar como tal (de outro gênero distinto do designado ao nascer) tem sido alvo de disputas em vários campos. Um tempo atrás, quando havia indícios de que Manning se identificava como mulher (e que se identificava como Breanna na época), a grande mídia ignorou e o assunto só correu nos blogues marginais e no twitter entre as transfeministas e feministas intersecionais que se importavam em respeitar o status de Manning.
Além disso, a questão dos vazamentos, prisão e tudo mais fez com que as pessoas, inclusive apoiadores, ignorassem essa questão como sendo algo ‘menor’ ou não digno de tanta atenção (e respeito), porque afinal o que importava era libertar Manning e defender a legitimidade/liberdade de informação. Só depois do julgamento e sentença, quando Manning disse com todas as letras como queria ser chamada (Chelsea) e que é mulher, que isso atingiu a grande mídia e agora é o assunto do momento.
Basta ela dizer que quer se chamar Chelsea para que isso ocorra nos EUA?
Ocorra em que sentido? Muita gente vai continuar deslegitimando por pura transfobia, por não querer um “herói” (sic) trans*, porque muita gente de esquerda que apoia os vazamentos e transparência de governos são pessoas transfóbicas. Muitos jornais vão continuar errando pronomes com pretextos mil, como o que vemos por aqui quando chamam mulheres trans* por pronomes masculinos e pelo nome civil. Isso não é novidade.
Em termos legais não sei responder, porque estando presa e ainda mais sendo alvo de toda essa desonestidade democrática dos EUA (sendo tratada como espiã), duvido que seja fácil para ela na prisão sequer conseguir acesso a um atendimento médico adequado. Na notícia do NY Times um representante da prisão militar de Fort Leavenworth já disse que “a prisão não fornece terapia hormonal ou cirurgia de redesignação sexual” e vimos no caso de Cece Mcdonald que não foi fácil conseguir continuar tomando os hormônios que ela já tomava previamente (inicialmente foi negado), e sabemos também que até hoje ela está em uma prisão masculina… Logo, vejo muitos empecilhos à frente.
Como é o processo transexualizador de uma pessoa aqui no Brasil?
Hoje em dia no Brasil exigem-se no mínimo dois anos de terapia compulsória para que uma equipe multidisciplinar (endócrino, psicólogo, psiquiatra) “atestem” que você é trans* (ou seja, te dêem o laudo) de acordo com critérios altamente subjetivos e pseudocientíficos. O laudo é pré-requisito indispensável para alterar o prenome judicialmente e para realizar a(s) cirurgia(s) que a pessoa deseja como sendo adequadas. Além disso, para conseguir certos hormônios geralmente é necessária receita médica (sem contar o alto custo dos medicamentos), e pelo SUS é necessário fazer parte desse programa de atendimento médico compulsório citado.
Gostaria que você explicasse porque, mesmo antes da terapia hormonal, Manning já é uma mulher.
Porque ser trans* não é algo só político, é algo interno, um sentimento/desejo interno de ser reconhecidx como sendo de outro gênero. Algumas pessoas lançam mão de hormônios e modificações corporais para tal fim, mas isso não é (e nem pode ser) pré-requisito para a pessoa se sentir como de outro gênero – e, sobretudo, para ser tratada e/ou reconhecida como tal.
Além disso, conseguir essas modificações/ hormônios configura uma questão não só de desejo pessoal, mas também de acessibilidade, inclusive no caso de Chelsea que como eu disse, muito provavelmente terá dificuldades em conseguir qualquer dessas coisas na prisão. Não é fácil conseguir atendimento pelo SUS e nem todas as pessoas trans* (ou melhor, quase nenhuma) podem pagar particular.
Logo, seria um absurdo esperarmos que essas pessoas realizassem todas essas alterações para tratá-las como se identificam, ainda mais porque como dito existem aquelas que não desejam realizar alterações corporais por diversos motivos.
A história de Bradley Manning. Veja o vídeo.
A informação já vinha circulando há algum tempo, mas só nos últimos dois dias foi divulgada amplamente pela grande mídia. A pergunta que não quer calar é: por que uma pessoa que tem sido exposta há tanto tempo pelos meios de comunicação e pela Justiça americana não teve, desde o início, a sua identidade de gênero respeitada? Por que o tempo todo se referiram a Manning com o sexo que lhe foi designado ao nascer e com o qual ela não está de acordo? O que isso nos diz sobre como nossa sociedade trata pessoas trans*?
Para tentar responder essas questões, entrevistei para o blog Hailey Kaas, transfeminista e pesquisadora em Linguística, Teoria Queer, Gênero e (Trans)Feminismo.
Eis a entrevista:
Há algum tempo circula a informação de que Manning seria uma pessoa trans*. Por que essa questão demorou tanto para ganhar as páginas dos jornais? O que isso diz sobre a visibilidade de pessoas trans*?
Primeiramente, as pessoas geralmente duvidam da “veracidade da transexualidade” se não for “atestada” por um médico. Por isso, as questões de autonomia das pessoas trans* em se identificar como tal (de outro gênero distinto do designado ao nascer) tem sido alvo de disputas em vários campos. Um tempo atrás, quando havia indícios de que Manning se identificava como mulher (e que se identificava como Breanna na época), a grande mídia ignorou e o assunto só correu nos blogues marginais e no twitter entre as transfeministas e feministas intersecionais que se importavam em respeitar o status de Manning.
Além disso, a questão dos vazamentos, prisão e tudo mais fez com que as pessoas, inclusive apoiadores, ignorassem essa questão como sendo algo ‘menor’ ou não digno de tanta atenção (e respeito), porque afinal o que importava era libertar Manning e defender a legitimidade/liberdade de informação. Só depois do julgamento e sentença, quando Manning disse com todas as letras como queria ser chamada (Chelsea) e que é mulher, que isso atingiu a grande mídia e agora é o assunto do momento.
Basta ela dizer que quer se chamar Chelsea para que isso ocorra nos EUA?
Ocorra em que sentido? Muita gente vai continuar deslegitimando por pura transfobia, por não querer um “herói” (sic) trans*, porque muita gente de esquerda que apoia os vazamentos e transparência de governos são pessoas transfóbicas. Muitos jornais vão continuar errando pronomes com pretextos mil, como o que vemos por aqui quando chamam mulheres trans* por pronomes masculinos e pelo nome civil. Isso não é novidade.
Em termos legais não sei responder, porque estando presa e ainda mais sendo alvo de toda essa desonestidade democrática dos EUA (sendo tratada como espiã), duvido que seja fácil para ela na prisão sequer conseguir acesso a um atendimento médico adequado. Na notícia do NY Times um representante da prisão militar de Fort Leavenworth já disse que “a prisão não fornece terapia hormonal ou cirurgia de redesignação sexual” e vimos no caso de Cece Mcdonald que não foi fácil conseguir continuar tomando os hormônios que ela já tomava previamente (inicialmente foi negado), e sabemos também que até hoje ela está em uma prisão masculina… Logo, vejo muitos empecilhos à frente.
Como é o processo transexualizador de uma pessoa aqui no Brasil?
Hoje em dia no Brasil exigem-se no mínimo dois anos de terapia compulsória para que uma equipe multidisciplinar (endócrino, psicólogo, psiquiatra) “atestem” que você é trans* (ou seja, te dêem o laudo) de acordo com critérios altamente subjetivos e pseudocientíficos. O laudo é pré-requisito indispensável para alterar o prenome judicialmente e para realizar a(s) cirurgia(s) que a pessoa deseja como sendo adequadas. Além disso, para conseguir certos hormônios geralmente é necessária receita médica (sem contar o alto custo dos medicamentos), e pelo SUS é necessário fazer parte desse programa de atendimento médico compulsório citado.
Gostaria que você explicasse porque, mesmo antes da terapia hormonal, Manning já é uma mulher.
Porque ser trans* não é algo só político, é algo interno, um sentimento/desejo interno de ser reconhecidx como sendo de outro gênero. Algumas pessoas lançam mão de hormônios e modificações corporais para tal fim, mas isso não é (e nem pode ser) pré-requisito para a pessoa se sentir como de outro gênero – e, sobretudo, para ser tratada e/ou reconhecida como tal.
Além disso, conseguir essas modificações/ hormônios configura uma questão não só de desejo pessoal, mas também de acessibilidade, inclusive no caso de Chelsea que como eu disse, muito provavelmente terá dificuldades em conseguir qualquer dessas coisas na prisão. Não é fácil conseguir atendimento pelo SUS e nem todas as pessoas trans* (ou melhor, quase nenhuma) podem pagar particular.
Logo, seria um absurdo esperarmos que essas pessoas realizassem todas essas alterações para tratá-las como se identificam, ainda mais porque como dito existem aquelas que não desejam realizar alterações corporais por diversos motivos.
A história de Bradley Manning. Veja o vídeo.
*A entrevista de Maíra Kubík Mano foi publicada no seu blog na Carta Capital
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