Padre Geovane Saraiva*
Aos 27 de agosto de 1999, após completar noventa anos, vividos e
bem vividos, Dom Helder foi chamado ao seio do pai. Marcado por uma graça
incomensurável, por onde passou, mesmo quando teve que ir para o ostracismo,
ficando no isolamento e excluído dos meios de comunicação social, durante o
regime militar, o qual via nele um risco e um perigo à democracia, permaneceu
forte e corajoso, sem nunca se abalar, deixando marcas profundas e indeléveis.
Sua força imaginadora, sua criatividade e, sobretudo, sua
capacidade de produzir e de realizar, foram extraordinárias, surgindo uma nova
Igreja, uma Igreja marcada profundamente pela esperança, como ele afirmava:
"Esperança é crer na aventura do amor, jogar nos homens, pular no escuro,
confiando em Deus". Ele se antecipou, em ideias e vestes, ao aggiornamente
que o Papa João XXIII promoveu e com o qual iria revolucionar, não apenas a
Igreja, mas o nosso mundo hodierno.
Dom Helder foi um articular, na melhor expressão da palavra, um
conspirador, pensando no bem, com suas iniciativas, compartilhadas por muita
gente da Igreja, desejando fazer com que a Igreja-Instituição se comprometesse
e se engajasse na causa dos empobrecidos, identificando-se com seu fundador e mestre,
Nosso senhor Jesus Cristo. Pensava e deseja ele uma Igreja despojada, pobre e
mais servidora.
Daí o "Pacto das Catacumbas", de 16 de novembro de
1965, que foi uma excelente oportunidade para os bispos, pensarem e refletirem
sobre eles mesmos, no sentido de fazer uma experiência de vida, na simplicidade
e na pobreza, numa Igreja encarnada na realidade, comprometida com o povo,
renunciando as aparências de riqueza, dizendo não as vaidades, consciente da
justiça e da caridade, através desse documento salutar e desafiador.
Logo que chegou ao Rio de Janeiro em 1936, numa hora santa do
clero, na qual o Cardeal Sebastião Leme criara os turnos de Adoração ao
Santíssimo Sacramento, o jovem Padre Helder subiu ao púlpito para o seu
primeiro sermão junto aos colegas de sua nova Arquidiocese. A figura magra,
pálida, de olhos fechados, mãos trêmulas e exaltadas, pronunciou uma oração que
até bem pouco era recordada pelos os padres daquela Igreja do Rio.
Foi quase um escândalo: Dom Helder cobrou dos sacerdotes aquele
fervor e aquele entusiasmo que no dia-a-dia, pouco a pouco ia se arrefecendo.
Parecia em transe, alçada sobre a cabeça de todos os padres da cidade
maravilhosa, enumerando as tibiezas de todos e de cada um, no desamor ao
trabalho pastoral, bem como a falta de garra no apostolado...
Já ao assumir a Arquidiocese de Olinda e Recife em abril de
1964, no seu profético pronunciamento, na tomada de posse, disse com firmeza:
"Quem estiver sofrendo, no corpo ou na alma; quem, pobre ou rico, estiver
desesperado, terá lugar especial no coração do bispo". A pregação do
Evangelho foi para ele, ao mesmo tempo, candente e misericordiosa, apaixonada
sensata.
Aprendamos, pois, do pastor dos empobrecidos, do cidadão
planetário, referencial e nosso grande e maior patrimônio, falecido há 14 anos
na cidade de Recife, PE, que entre incontáveis pensamentos, concluo neste:
“Quem me dera ser leal, discreto e silencioso como a minha sombra”.
*Padre da Arquidiocese de
Fortaleza, escritor, membro da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza,
da Academia de Letras dos Municípios do Estado Ceará (ALMECE) e Vice-Presidente
da Previdência Sacerdotal - Pároco de Santo Afonso - geovanesaraiva@gmail.com
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