"Mas e se o amor pra nós chegar, de nós, de algum lugar com todo o seu tenebroso esplendor”?
(Foto: Arquivo) |
Por Marco Lacerda*
As reflexões que faço aqui despertaram em mim depois de assistir ao mais recente filme de Terrence Malick, “Amor pleno”. Por alguma razão fora do alcance da lógica, o filme remeteu-me aos meus tempos de religioso, quando vivi dez anos sob a égide de três votos, entre os quais o de castidade – uma opção bizarra aos olhos do mundo.
As primeiras manifestações do medo de amar surgiram cedo na minha vida e foram, talvez, o principal motivo que me levou a refugiar-me numa ordem religiosa onde me sentia protegido da obrigação de dar explicações, muito menos de justificar minha repentina submissão àqueles votos estranhos. Só muito depois me daria conta da armadilha que armara para mim mesmo.
Na verdade, protegia-me do mundo, mas não de mim e da noção aprendida intuitivamente de que amor não é simples afeto, mas um gesto que dá sentido a tudo, sem o qual a vida não vale a pena e pode se transformar num deserto insondável.
Depois dos primeiros anos de enamoramento com a ordem religiosa, próprio de qualquer lua de mel, vieram os impulsos eróticos. Quantas vezes acordei angustiado no meio da noite com um grito travado na garganta: “Meu Deus, esta cama é grande demais para apenas nós dois”!
Na primeira vez, a cerca imposta pelo voto de castidade foi transposta com uma mistura de medo e culpa. Na segunda, os mesmos sentimentos eram acompanhados de uma incômoda sensação de dúvida. Da terceira em diante, vieram também os questionamentos inevitáveis em alguém onde sobrevive, a duras penas, um compromisso moral que não suporta conviver com a traição – traição a Deus, a quem os votos foram oferecidos e, sobretudo, a mim mesmo ao perdoar-me por uma atitude que sempre repudiei nos outros.
Não foram poucas as vezes em que, depois de escapadas furtivas para entregar-me a um desvario de prazeres, amanheci em abismos dolorosos de culpa, arrependimento e desejo de reparação. A essa altura eu já me habituara a entrar e sair da vida pela porta dos fundos.
Antes mesmo de alguém me chamar às falas e sugerir um exame de consciência que confirmasse se aquela era mesmo a minha vocação, eu já sabia a resposta. Mas mesmo depois da deixar a ordem e os votos vivi durante muito tempo à sua sombra.
Até o dia em que apareceu em nossas vidas um certo Francisco. Sua mensagem, pronunciada com delicadeza e mansidão, ecoou em todo o Universo: “Quem sou eu para julgar”? Nada mais seria igual ao que fora até então depois daquele gesto, sem precedentes, de compaixão e acolhimento. Hoje ainda acordo sobressaltado no meio da noite, mas logo volto a adormecer com os ouvidos acariciados pelo verso de um outro poeta: “O mundo compreendeu e o dia amanheceu em paz”.
"Eu te amo" - Chico Buarque. Veja o vídeo:
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do DomTotal
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