01/02/2014

Pobre com dinheiro é mal visto

O dinheiro é visto como um grande corruptor entre os pobres e desamparados.


O dinheiro gera conflitos e tensões. (Foto: Arquivo)
Por Leonardo Castilho* 

O sociólogo Ariel Wilkis investiga a dimensão mercadológica da vida cotidiana nos bairros populares. Adverte que o dinheiro gera conflitos e tensões, mas também solidariedade e vínculos morais. Rechaça o preconceito referente à ausência da cultura da poupança. E aponta para as mudanças ocorridas nos últimos anos: “Há uma década, as agências de marketing não conheciam os setores populares, e isto mudou”, indica o sociólogo ao analisar a ampliação do crédito a estes setores; o papel da Atribuição Universal por Filho para a Proteção Social (AUH) e o lugar da mulher na administração do dinheiro.

Durante séculos, diferentes manifestações da arte, literatura e inclusive das ciências sociais na cultura ocidental, atribuíram ao fator monetário uma conotação negativa. O dinheiro surge como um grande um grande corruptor, principalmente aos pobres e desamparados. Desta maneira, Wilkis se propôs a desconstruir a perspectiva voltada para as “suspeitas sobre o dinheiro”, num trabalho de investigação sobre as relações sociais e culturais geradas cotidianamente na economia popular. “O uso do dinheiro promove dinâmicas de integração, conflito e moral que não podem ser desprezadas. Todo projeto político define sua natureza a partir da maneira com a qual organiza a relação das pessoas com o dinheiro”, assinala Wilkis. 

Eis a entrevista:

Por que as ciências sociais e a literatura desenvolveram um olhar tão preconceituoso em relação à gestão do dinheiro?

Acredito que a visão mais comum sobre o dinheiro, e a qual se encontra fortemente arraigada na cultura ocidental, é a que o percebe como um meio a outros meios. Um objetivo de difícil controle e que é capaz de corromper facilmente as pessoas. O dinheiro sempre pode converter-se em outra coisa. Esta é a ideia instaurada sobre o que há em sua natureza. As análises sobre as questões monetárias são sempre suspeitas. A pergunta que sempre paira no ar é “o que irá se fazer com o dinheiro?”. Por isso, o que busquei com este livro é ir além deste obstáculo ideológico. Para muitos autores, a crítica ao capitalismo deve partir de uma concepção negativa do dinheiro. Todavia ele gera vínculos e relações sociais que vão além destas meras suspeitas. Interessa-me desenvolver um olhar crítico, que avance em relação à questão, isto é, que não se detenha na simples estigmatização do monetário. Quando pesquisamos sobre esta problemática na história da cultura, recorrentemente a corrupção e a negatividade surgem como seus aspectos centrais. Talvez a exceção seja Jorge Luis Borges que, em seu conto 

Por que decidiu abordar esta problemática?

O que fiz foi seguir uma tendência estabelecida há anos na sociologia. Dediquei-me a interpretar as transformações que ocorreram no mundo popular desde meados da década de 1970 até os dias de hoje. Este é o antecedente teórico deste livro. Entretanto, no meu caso em particular, poderia dizer que foquei no peronismo e, ao questionar a adesão dos setores populares a este movimento político, me deparei com o dinheiro. A ideia era desenvolver uma investigação sobre diferentes aspectos da vida popular, a religião, o futebol, a política e o comércio. E, em todos estes espaços, o dinheiro estava presente e era, definitivamente, o elemento que me permitiu compor um relato que unificava os diferentes fragmentos do universo popular.

Pode-se dizer então que o dinheiro está à frente do peronismo na abordagem do mundo popular?

Digamos que podemos entender o mundo popular enfocando outros objetos e fazendo diferentes conexões. Pode-se descentrar o olhar sobre o peronismo e este é um pouco do desafio: fazer uma sociologia do mundo popular a partir de um enfoque que busque compreender como o dinheiro se converte em um objeto que promove dinâmicas de integração e de conflito.

A relação dos setores populares com o dinheiro mudou nos últimos dez anos?

Surgiu uma nova estrutura monetária no mundo popular. A monetarização da política social que tem a AUH como paradigma fez surgir uma nova centralidade do dinheiro. Além disto, os agentes financeiros redefiniram os setores de baixa renda como atores relevantes no mercado de crédito. Uma década atrás, as agências de marketing não conheciam os setores populares em sua estratificação, e isto mudou. E, além disto, houve um processo de formação de novas formas de financiamento no interior da economia dos bairros. A tradição do fiado e o empréstimo familiar foram somados aos elementos heterogêneos de créditos propostos pelas grandes cadeias comerciais, por detrás das quais encontram-se os bancos. 

Expandiu-se então o uso de cartões de crédito nos bairros da periferia?

Sim. Este é um fenômeno que está em crescimento. O uso do dinheiro eletrônico cresce a cada dia e é um reflexo da concentração de recursos financeiros em bancos, a bancarização.  Os cartões de crédito estão muito disseminados. Há famílias que possuem mais de uma “chapita”, como se diz popularmente na Argentina. O acesso a um cartão redefine as relações no interior dos lugares. Quem possui um está em uma posição de administrar o endividamento, assim como a poupança. Os cartões criaram uma nova estrutura na gestão do monetário no mundo da economia popular, porque através deles se acende ao mundo financeiro. 

Existe um preconceito muito arraigado que sustenta que os pobres gastam o dinheiro que ganham e que não possuem a cultura da poupança Ernesto Sanz chegou a dizer que o dinheiro da AUH irá ir “pelo ralo da droga e do jogo”. É realmente assim?

É uma falácia. A categoria da poupança é muito presente nas estratégias da economia popular. É mentira que os pobres se dedicam apenas a gastar o dinheiro que tem. Se fosse o contrário, o sistema bancário não propiciaria estas alternativas financeiras das quais me referi. Isto é parte destes preconceitos gerados a partir de uma visão de suspeita. No fundo, é mal visto que o pobre tenha dinheiro e que faça com ele o que lhe parecer melhor. Na mão dos pobres, o dinheiro é um elemento corruptor. Tratam-se definitivamente de estigmatizações que tendem a reproduzir práticas culturais de dominação.

Pode-se dizer que o dinheiro gera coesão social entre os setores populares?

Sim, e também produz conflitos e tensões. O dinheiro impulsiona condutas de solidariedade e gera vínculos morais, assim como também é possível que faça o contrário. Quando se trata da descrição das relações que são geradas, há que despir-se de preconceitos e evitar os olhares unilaterais. No universo popular, nem todos são empreendedores neoliberais, nem tão pouco militantes da autogestão.

Por que no livro é dada uma importância particular a noção de dinheiro militante (no original, dinero militado)?

Retomando Max Weber, poderíamos dizer que o dinheiro na política é algo que atrapalha, que provoca incômodos. Contudo, os processos de democratização geram processos de monetarização, inevitavelmente. Entre a democracia e o dinheiro existe uma relação muito estreita, basicamente porque para que este sistema político funcione, devem atuar organizações políticas dedicadas a por em prática o consenso democrático, isto é, os partidos. E estes precisam ter uma estrutura econômica para sustentar seu funcionamento. Toda a discussão e o debate instalado sobre o clientelismo tende a passar de longe desta verdade sociológica: para que haja democracia deve haver dinheiro. 

E este dinheiro militante está vinculado também a uma concepção moral?

Sim, porque serve para comprovar vontades, mobilizar lealdades e medir o desinteresse dos envolvidos. O dinheiro tem uma produtividade política específica e busquei trazer isto à luz. Se não assumirmos que a participação política democrática é produzida como resultado de uma discussão sobre o lugar do monetário, vamos a padecer nesta situação em que, quem tem a palavra são os empreendedores morais de sempre, estes que levantam o dedo para apontar para os clientelismos e a corrupção. E são aqueles que dizem que os recursos da ajuda social se vão pelo ralo.

Então os setores populares podem gerar contrapoder com o uso do dinheiro?

Nenhuma organização política pode se prescindir de estabelecer uma relação com o monetário para estabelecer as conexões sociais que necessita. Definitivamente, todo projeto ideológico assenta sua natureza no modo com que relaciona as pessoas com o dinheiro. A discussão política passa por ai. Negar tudo isto seria voltar aos parâmetros do século XIX.

Qual é o lugar que a mulher ocupa na administração do dinheiro nas famílias dos setores populares?

Em todas as famílias, o espaço da mulher é central na hora de gerir o dinheiro que entra e que sai de uma casa. Para mim interessava marcar três coisas. A primeira é de como se reconstroem as relações de gênero por intermédio do dinheiro. Quando uma mãe pede a seus filhos que contribuam com parte de seus salários para um fundo em comum, está orientando sobre valores de masculinidade que eles deverão seguir posteriormente, quando deixarem a casa para formar outro lar. Mas aqui a mãe, através do dinheiro, projeta valores intrafamiliares. Outra questão é o lugar que a mulher assume em relação às políticas sociais que concedem a ela, implicitamente, a responsabilidade financeira da família. 

Qual o papel da economia popular nos mercados, como o “La Salada”?

“La Salada” é um lugar de produção de lucros injustamente estigmatizado. Penso que os rótulos utilizados para insultar estes mercados são os mesmos que aparecem na hora de desqualificar a atividade dos partidos políticos nos bairros. As terminações “comércio ilegal” ou “economia negra” são equivalentes a “clientelismo” ou “aparato”. São palavras que vêm de um mesmo prisma de análise. A intenção é retirar-lhes a legitimidade dos lucros que são produzidos no mundo popular, sem questionar as irregularidades que ocorrem nos circuitos de produção e consumo dos setores mais ricos.

E o que ocorre com a circulação do dólar?

Há duas situações muito visíveis. Uma é a da poupança. Muita gente acumula esta moeda nos setores populares, isto é inegável. E outra está vinculada aos imigrantes, que utilizam esta moeda para enviar remessas a seus familiares. Por isto, o dólar se torna uma questão central também na economia popular.

Por que acredita que até agora não houve um desenvolvimento sociológico em relação à gestão do dinheiro?

Acredito que o mundo mercantil, onde se insere o dinheiro, teve pouca legitimidade política e intelectual, diferentemente dos outros espaços que constituem o mundo popular, tais como as fábricas, as praças, as estradas, os bairros ou os tribunais. A dimensão do mercantil aparece desconectada destes espaços. Além disto, devemos ter em conta que as ciências sociais que tiveram um olhar crítico do neoliberalismo nos anos 90, consideravam o dinheiro e o mercado como desintegradores da vida social e laboral. Muitos trabalhos de campo foram feitos sobre a vida na periferia e as manifestações dos trabalhadores nas estradas, mas nada foi produzido sobre como os trabalhadores gerem o dinheiro em seu cotidiano. Era algo que faltava, é o que busco descobrir.
* A entrevista de Leonardo Castillo foi publicado no jornal Página/12. A tradução é do Cepat.
Dom Total

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