Francisco de Aquino Júnior*
No dia 11 de setembro de 1962, um mês antes da
abertura do Concílio Vaticano II, o papa João XXIII enviou uma mensagem ao
mundo. Nela, fala de Jesus como “luz” e da missão da Igreja de “irradiar” essa
luz no mundo; fala da preocupação e responsabilidade da Igreja com esses
problemas; e fala da contribuição que o Concílio poderia oferecer para a
solução dos mesmos - contribuição fundada “na dignidade do ser humano e em sua
vocação cristã”. E, aqui, passa a indicar alguns pontos importantes: a
igualdade de todos os povos no exercício dos seus direitos e deveres, a defesa
da família e a responsabilidade social. Neste contexto, João XXIII acrescenta o
que considera “outro ponto luminoso”: “Pensando nos países subdesenvolvidos, a
Igreja se apresenta e quer realmente ser a Igreja de todos, em particular, a
Igreja dos pobres”.
Comentando
esta afirmação, o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez destaca três ideias
importantes. Em primeiro lugar, a igreja é pensada em relação com os pobres e
com os países pobres. Em segundo lugar, o texto estabelece os termos de uma
relação tensa, mas fundamental na Igreja: universalidade da salvação (Igreja de
todos) – parcialidade ou predileção na realização histórica da salvação (Igreja
dos pobres). Em terceiro lugar, a Igreja aparece como uma realidade em
processo, não acabada: “é e quer ser”.
A afirmação
do papa teve muita repercussão em um grupo de bispos que ficou conhecido como
“Igreja dos Pobres” e que no final do Concílio assumiu um compromisso com a
pobreza e o serviço aos pobres, firmando o chamado “Pacto das Catacumbas”.
Entre eles estavam dois cearenses: um de nascimento (dom Hélder Câmara) e um de
missão (Dom Fragoso). Esses bispos trabalharam muito para que os pobres
recuperassem na Igreja o lugar central que tinham na vida e missão de Jesus: “É
nosso dever colocar no centro deste Concílio o mistério de Cristo nos pobres e
a evangelização dos pobres” (Cardeal Lercado de Bolonha); “O primeiro lugar na
Igreja é reservado aos pobres” (Charles-Marie Himmer, bispo de Tournai).
Apesar da
importância e da repercussão desse grupo, ele não alcançou o que esperava do
Concílio: que a Igreja, que é de todos, fosse, sobretudo, dos pobres. Talvez
fosse muito para um Concílio dominado pelas Igrejas do primeiro mundo, Igrejas
inseridas no mundo da riqueza e, em grande medida, aliadas aos ricos e poderosos.
Mas a semente foi lançada pelo bom e santo papa João XXIII!
Medellín
Três anos depois, na Conferência do Episcopado Latino-americano em
Medellín (1968), a semente germinou e começou a crescer e produzir muitos
frutos. Nascia uma Igreja profética, pobre e comprometida com os pobres; Igreja
de todos, mas, sobretudo, Igreja dos pobres; Igreja da libertação. Sua
característica mais importante foi e continua sendo o que se convencionou
chamar “opção preferencial pelos pobres”.
Aos
poucos, a Igreja foi re-descobrindo e re-assumindo algo que era fundamental e
central na vida e na missão de Jesus, algo que nunca se perdeu completamente na
vida da Igreja, mas que tinha perdido centralidade e relevância em uma Igreja
seduzida pelo poder e pela riqueza, tantas vezes aliada dos ricos e poderosos.
Uma parcela cada vez maior da Igreja (do simples fiel e da liderança
comunitária a religiosos/as, presbíteros, bispos, cardeais; de pessoas isoladas
a paróquias, dioceses e até conferências episcopais), passa a assumir, por
causa do Evangelho de Jesus Cristo, a causa dos pobres e oprimidos. E de muitas
formas: defendendo seus direitos, denunciando as injustiças que se cometem
contra eles, apoiando e até participando de suas lutas e organizações. Muitos
chegaram a ser perseguidos, caluniados, torturados e até martirizados por causa
dos pobres. São mártires da justiça do Reino de Deus, mártires dos pobres –
como Jesus!
Certamente,
não é essa a Igreja que está na mídia, que dá ibope, que arrasta multidões...
Os pobres são sempre os últimos – até nas igrejas que sempre têm coisas mais
“importantes” e “urgentes” para fazer que cuidar dos caídos à beira do caminho
(Lc 10, 25-37). Mas essa é a Igreja de Jesus Cristo e ela continua viva e
atuante como “fermento”, “sal” e “luz” da justiça do Reino neste mundo. Ela se
faz presente em muitas comunidades e grupos que vivem a fraternidade e a
solidariedade, que denunciam e se enfrentam com as mais diferentes formas de
injustiça, opressão, preconceito e discriminação, que apoiam e participam das
lutas dos pobres e oprimidos na defesa e conquista de seus direitos, que criam
serviços e estruturas de apoio e defesa dos pobres e fracos como as pastorais
sociais (terra, indígena, povo da rua, menor, criança, idoso, carcerária,
mulher, caritas etc.) e, enfim, que anunciam com a palavra e com a vida que
Deus é “Deus dos humildes, socorro dos pequenos, protetor dos fracos, defensor
dos desanimados, salvador dos desesperados” (Jt 9, 11) e que “religião pura e
irrepreensível aos olhos de Deus Pai consiste em cuidar de órfãos e viúvas em
suas necessidades e em não deixar-se contaminar pelo mundo” (Tg 1, 27).
*Doutor em teologia pela
Westfäalische Wilhelms-Universität de Münster (Alemanha), professor da
Faculdade Católica de Fortaleza e padre da Diocese de Limoeiro do Norte.
Fonte: Jornal O Povo
Nenhum comentário :
Postar um comentário