03/09/2013

´Minha coluna sempre parte de um espanto´

Lançando seu quinto livro, Eliane Brum* fala de jornalismo e do processo de elaboração de seus textos
O que mais te encanta no jornalismo, mesmo após vinte anos de atuação?
A possibilidade de me espantar. A realidade é a maior invenção de todas. Cada pessoa que abre a porta da sua casa e da sua vida para que eu possa entrar é um mundo inteiro que se abre, uma teia de sentidos totalmente singular, uma possibilidade de me alargar a partir da experiência de um outro.

Eliane Brum: "Para mim, a escuta profunda, implica na capacidade de nos esvaziarmos da nossa visão de mundo para alcançar o mundo do outro"

Ser repórter ainda é uma aventura para você? Se deixar de ser, você pula fora do barco?

Sim, é uma grande aventura, que dá sentido à minha vida. Documentar a história em movimento, ser historiadora do cotidiano (que é o que um repórter é) é uma enorme responsabilidade que exerço há 25 anos. Se em algum momento da minha vida perceber que já não posso corresponder a ela com a dignidade necessária, deixarei de bater na porta dos mundos.

Em uma das colunas você afirma que usa tudo que viveu para escrever e que ouvir é o melhor que você faz. Na sua opinião, essa capacidade está sumindo do jornalismo?

Escutar não é apenas uma dificuldade dos jornalistas, mas das pessoas da nossa época, em geral. Há muito barulho, muita fala, mas pouca escuta. A começar pela escuta de si mesmo. A dificuldade de escutar no jornalismo é um reflexo dessa época que vivemos. Mas não saberia dizer se, nas décadas passadas, havia uma escuta maior na reportagem. Acho que tivemos grandes escutadores na história do jornalismo brasileiro, mas não era algo generalizado. Para mim, a escuta profunda, que implica na capacidade de nos esvaziarmos da nossa visão de mundo, de nossos preconceitos e de nossos julgamentos, para alcançar o mundo do outro, é o principal instrumento de um repórter. Estar aberto ao outro é sempre um risco. Ser repórter é aceitar esse risco.

Como você conduz as suas matérias ou colunas? Como elas nascem?

Minha única âncora é o prazo de entrega. Como sou uma repórter escrevendo uma coluna de opinião, faço minha coluna semanal usando parte do processo de reportagem. Ou seja: minha coluna sempre parte de um espanto diante do mundo e avança em uma investigação movida pelas dúvidas. Meu objetivo é desacomodar o leitor, para que ele possa ver o mundo, a vida, um determinado tema, de outros ângulos possíveis. Mas, para conseguir desacomodar o leitor, eu preciso antes desacomodar a mim mesma.

Você mantém contato com alguns dos personagens? Inclusive, você concorda com essa ideia tão disseminada de "pessoas-personagens" no jornalismo?

Eu não gosto de chamar gente encarnada de "personagem", porque acho que pode ter um efeito perverso sobre a relação entre o jornalista e aqueles que ele tem a missão de decifrar. Personagem remete à ficção, à licença para inventar, que o jornalismo não tem e não pode ter. Acho meio chocante ouvir frases como: "Você precisa encontrar um personagem que diga isso ou faça tal coisa". Isso é o oposto do jornalismo, na medida em que entrevistar alguém deve ser um processo de desvendamento do outro - e jamais um processo de "encaixamento". Acho também que chamar de personagem cria uma distância, que pode implicar numa traição. Precisamos ter muito claro que lidamos com pessoas que vivem neste mundo. Contar suas histórias é assumir uma enorme responsabilidade, porque se trata de gente viva, mesmo quando morta. Jornalista conta pessoas, ficcionista cria personagens. Que os personagens de um ficcionista sejam tão ricos e complexos que virem gente no nosso imaginário é o que torna um escritor grandioso. Que as pessoas contadas por um jornalista se pareçam com personagens é o que faz um jornalista ser medíocre.

Como você se sente ao carregar tantas pessoas dentro de si?

Rica e habitada. Meu corpo, como minha alma, são terra habitada, graças às pessoas que confiaram em mim para me contar suas histórias.

Alguma dessas pessoas te impactou mais do que outras?

Acho que, quando uma reportagem não transforma a vida de quem conta e de quem é contado, é porque ela não aconteceu. Então, todas as pessoas cujas histórias contei me marcaram de alguma maneira. Claro que algumas mais do que outras. Como a Alice de Oliveira Souza, que permitiu que eu acompanhasse os últimos 115 dias da sua vida, na maior prova de confiança que alguém já me deu. Ela sabia que eu contaria uma história, a sua, que ela jamais leria. Ou o Hustene e a Estela, chefes da família Costa Pereira, da periferia da Grande São Paulo, cuja trajetória acompanho desde 2002, com quem aprendo muito. Ou o Raimundo Belmiro e o Herculano Porto, beiradeiros da Terra do Meio, no Pará. Ou a Sônia, moradora de um povoado boliviano, onde a maioria da população tem doença de Chagas. Uma menina linda, mas com olhos de velho, por conta de um confronto cotidiano com a morte. São muitas as pessoas que me tornaram o que sou. E, espero, ainda há muitas que me tornarão.

Por que "A Menina Quebrada" dá nome ao livro? O que a sua reflexão sobre a percepção de Catarina reflete sobre o contexto do seu trabalho?

Na coluna intitulada "A menina quebrada", conto o momento exato em que minha afilhada, Catarina, então com menos de 2 anos, descobre que as pessoas quebram, que até as meninas quebram. Um momento que todos vivemos, mas já não somos capazes de lembrar. De certo modo, somos todos meninas quebradas e acho que a minha coluna de opinião também é quebrada, na medida em que é uma coluna afetada pela vida. E na medida em que ela conta de quebras, de marcas, de uma vida que se sabe viva porque marcada. Acho que todo repórter tem uma pergunta que o move em seu percurso. A minha é como as pessoas dão sentido à sua vida, em geral com muito pouco, em geral com cacos. O que me fascina é como cada um inventa uma vida. E, neste sentido, nossa vida é a nossa primeira ficção.

Seus textos, às vezes, partem do mundo exterior; outros, saem de você. Como é feita essa escolha? Você costuma anotar temas para futuras colunas ou eles "partem do factual"?

Não há regra. Vou anotando minhas observações e ideias, que, como disse antes, sempre partem de um espanto. E a partir daí faço uma investigação, mesmo que seja, algumas vezes, uma investigação dos meus interiores. Minha única regra é estar tomada pelo que escrevo. Minha coluna é bem misturada, como é misturada a minha curiosidade tanto pelo mundo de dentro como pelo de fora. Espero que tenha muitas histórias esperando por mim. Quando eu parar de contar histórias é porque morri.

Em alguns textos, você defende pessoas que foram oprimidas por serem diferentes. Você já foi hostilizada por isso?

Acho que todos nós já fomos, em algum momento da vida, em alguma circunstância. Acredito que cada pessoa é única, singular e irrepetível. Nossa diferença é justamente aquilo que nos iguala. É sobre isso que escrevo.

A menina de Ijuí se tornou colunista da Época e coleciona relatos impressionantes de um Brasil escondido. A que você atribui a empatia que gera nas pessoas com as quais você conversa? Por que razão é em você que elas confiam para contar suas histórias?

Não há segredo algum. Há uma comunicação que não é apenas verbal entre as pessoas. Quando você bate na porta de alguém e diz que quer escutar aquela pessoa, ela sente se você vai escutá-la ou se é apenas uma frase vazia. O que eu faço é apenas dizer que quero escutá-las. Dizer com tudo o que sou. Mas sempre com a consciência de que ninguém é obrigado a me contar sua vida. Se a pessoa não quer, eu agradeço e vou embora. Não arranco nada de ninguém, eu só colho.


LIVRO
A Menina Quebrada e Outras Colunas
Eliane Brum
Arquipélago
2013, 432 páginas
R$ 39,90

*Escritora e colunista da revista época 

A colunista das segundas e sua inquietação com o "desacontecido"

"Viver, Catarina, é rearranjar nossos cacos e dar sentido aos nossos pedaços, os novos e os velhos, já que não existe a possibilidade de colar o que foi quebrado e continuar como era antes. E isso é mais difícil do que aprender a andar e a falar. Isso é mais difícil do que qualquer outra coisa que você fará." Eliane Brum, vencedora de mais de 40 prêmios nacionais e estrangeiros como repórter, se dirige como em uma carta à sua afilhada Catarina, de menos de dois anos à época em que o texto foi escrito. Ao ver uma adolescente com a perna engessada durante uma festa, a pequena se horrorizou ao dar-se conta de que as pessoas - até as meninas - quebram. A perturbação dos adultos, por outro lado, surge com mais uma das profundas reflexões da jornalista.

O quinto livro de Eliane, "A Menina Quebrada e Outras Colunas", lançado pela Arquipélago Editorial, concretiza o objetivo da autora expresso ainda nas páginas introdutórias: "Não escrevo para apaziguar, nem a mim nem a você. Para mim só faz sentido escrever se for para desacomodar, perturbar, inquietar".

A obra reúne 64 colunas de opinião, publicadas às segundas-feiras para o site da Revista Época, entre os anos de 2009 e 2013.

Cada texto é uma surpresa. O leitor fiel de Eliane Brum reconhece o começo da semana não como um fardo, mas como um desafio, a começar sempre pelo desequilíbrio provocado pela delicadeza forte dos olhares e das escutas da jornalista sobre os aspectos mais banais da luta que é "ser e estar no mundo".

Repórter dos desacontecimentos, Eliane escreve "sobre a extraordinária vida comum, sobre o cotidiano dos homens e das mulheres que tecem os dias e também o país, mas nem sempre são contados na história". Nascida em Ijuí (RS) em 1966, filha de pais apaixonados entre si e pelas palavras, Brum subverte os critérios de noticiabilidade do Jornalismo e coloca o dia a dia sob holofotes. Não somente os fortes, os poderosos, os ricos, mas também os que compõem a multidão dos 190 milhões de brasileiros. Vendo e (principalmente) escutando, a repórter das ruas cujo olhar nunca se acomoda passeia por temas da vida de dentro e de fora de cada um - sempre provocando. Ler Eliane Brum é perceber-se, ainda que em pequena intensidade, mudado ou transtornado, como se o tempo dedicado ao texto fizesse o leitor perder um trem. Então, sem rumo na estação, é preciso tomar uma decisão - qualquer que seja. O lugar e Eliane não permitem permanecer, apenas migrar e descobrir(-se).

As 64 colunas fogem do óbvio. Algumas partem do factual e da conjuntura momentânea, como o suicídio de Aaron Swartz, o gênio que via na Internet o poder da verdadeira democracia, ou o comportamento do milionário Eike Batista a respeito do filho que atropelou e matou um ciclista. Um filme ou peça em cartaz, um livro na mesa de cabeceira: as artes também fazem a jornalista repensar conceitos entranhados no tecido social ou analisar o quanto personagens fictícios revelam sobre um mundo bastante real. "Por que amamos tanto Lisbeth Salander" e "Não atirem no Coringa!" são exemplos disso.

Certas temáticas são particularmente caras à repórter, como a cultura da felicidade e do sucesso que gera frustrações e infelicidades, a medicalização da vida, a morte e o complexo relacionamento entre pais e filhos.

Apesar de tudo, Eliane e sua menina quebrada devem ser apreciadas em doses homeopáticas. É preciso tempo para elaborar a dor e o sofrimento, a felicidade e a realização. Sendo assim, por mais tentador que seja, é desperdício ler as 431 páginas do livro em uma ou duas semanas. Cada coluna é um mundo, uma civilização e uma pessoa: precisam de maturidade, reflexão e tempo para serem entendidos, absorvidos e respondidos. Sim, respondidos! "Cada texto é uma carta - e toda carta só se realiza se encontrar seu destinatário", diz Eliane na dedicatória. E você, o que tem a dizer? 


Diário do Nordeste

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