29/12/2011

Da janela

Às vezes, até lhe parecia ver pessoas conhecidas e o coração batia-lhe mais forte, esperando que entrassem na sua porta. Mas não entravam.
No primeiro dia de trabalho na Associação, Rita foi enviada a visitar a senhora da porta 43, 2º direito. O seu entusiasmo em poder levar algum aconchego sobrepunha-se a uma certa apreensão pelo desconhecido. Tocou à campainha. Passado algum tempo, a porta abriu-se e Rita olhava de frente uma senhora de cabelo branco, curvada sobre uma bengala.

– É a senhora Maria! Eu sou a Rita, da Associação Encontro. Tenho algum tempo livre e gostava de aproveitá-lo para conhecer pessoas interessantes.

A senhora Maria abriu muito os olhos e respondeu incrédula e com voz tímida:
– Aceitar eu aceito, minha querida! Mas deve estar enganada na porta. Eu sou apenas uma pessoa normal, já com 83 anos. Não tenho nada de interessante. O bom está lá fora, mas há muito que não é para mim. Canso-me muito a andar.
– Disseram-me que a dona Maria era uma pessoa que eu iria gostar de conhecer. Porque acha que me recomendaram que a visitasse?
– Não sei! Será por eu gostar de receber visitas. Sabe, dona Rita, quando era nova, sempre gostei de participar nas actividades da minha terra. Aprendi muito e conheci pessoas boas. Cantámos, dançámos, ajudámos os que necessitavam. Foi um tempo em que até nos esque cíamos de nós! Mas foi o tempo em que mais tínhamos. Aquilo é que era alegria!
– E de passear, gosta?
– Se gosto! Tenho saudades de ver a serra, de sentir o cheiro da terra. Eu nasci no campo, sabe? Com esta idade lembro-me dos tempos de criança, as coisas que tinha em criança e fico com desejo de as sentir de novo.
– E se eu lhe pedisse para vestir um fato bonito e vir comigo dar um passeio?
– Ó minha querida, isso seria muito difícil para si. Eu ando muito mal, depois que parti a perna.
– Vamos experimentar? Eu ajudo!

Os olhinhos da senhora Maria ganha ram um brilho renovado. Nem se atreveu a contrariar para não estragar a possibilidade de realizar um sonho que julgava inacessível. Levou Rita ao guarda-fato e confiou-lhe a escolha da roupa de passeio. Os passos tornaram-se apressados, lembrando a menina enérgica que corria pelos campos.
Pouco depois, já as duas saíam de braço dado em direcção ao carro de Rita. Maria estava a viver um momento irreal. Olhava as pessoas de perto na estrada e, com gozo, percebeu que era uma delas. Voltara a fazer parte daquele movimento que admirava da janela. Hoje, sentia-se muito viva! 

Entrou no carro de Rita e pôde pela primeira vez, desde há três anos, ver o verde da serra, cheirar a terra, tocar nos musgos, olhar o azul do céu mais azul e ouvir a canção do vento. E eles levaram-na em voo até ao mundo onde ela era leve, tão leve que corria pelos campos e experimentava a liberdade. Ali, as pernas não eram pesadas nem a sua idade eram 83 anos. 

Rita tinha conseguido construir esta magia: devolver a Maria as imagens que ela agora podia guardar, de fresco, para reviver da sua janela. Contudo, pelos encontros que se seguiram, nunca mais aquela janela voltou a ser o único lugar para Maria observar o mundo. E Rita encontrou em Maria uma forma de ser construtora do mundo que ela defende.

Nenhum comentário :

Postar um comentário