03/03/2012

O governo concluiu que o SUS vai mal. Ótimo

A primeira avaliação detalhada da saúde pública revela o que não queremos enxergar

CRISTIANE SEGATTO
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CRISTIANE SEGATTO  Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é cristianes@edglobo. (Foto: ÉPOCA)
O Ministério da Saúde divulgou na quinta-feira (1º) o resultado do primeiro IDSUS (Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde). Trata-se de uma avaliação da qualidade e acesso a serviços da rede pública de saúde. Os municípios foram classificados em diferentes grupos de acordo com as condições sociais e de estrutura de saúde. Numa escala de 0 a 10, o Brasil tirou nota 5,47. Apenas 1,9% dos brasileiros vive em municípios com índice de 7 em diante.
É pouco? Sim, claro que é. É revoltante? Sem dúvida. Muitos brasileiros dirão que a saúde pública é uma vergonha, que o Brasil não tem jeito e, pouco depois, esquecerão o assunto como se ele fosse o mais irrelevante de nossas vidas.

É preciso fazer diferente. Enxergo nessa divulgação uma ótima notícia. Aquela sensação de que o SUS é péssimo na maioria dos lugares, razoável em alguns outros e ótimo em raras ilhas de excelência agora pode ser expressa em dados. Saímos das eternas reclamações genéricas para o plano da informação concreta.

As maiores capitais aparecem no grupo 1 (o das cidades com melhores condições sociais e de estrutura de saúde). Nesse grupo, a campeã em qualidade e acesso aos serviços foi Vitória, com nota 7,08. São Paulo ficou com 6,21. A pior colocada no grupo 1 é o Rio de Janeiro (4,33), atrás de Belém (4,57), Maceió (5,04), Brasília (5,09) e outras.

O primeiro passo para exterminar os cupins que ameaçam uma casa é identificar a origem deles, ver quais móveis estão comprometidos, quais ainda se salvam e usar o veneno certo, não é assim? Em muitas instâncias da administração pública, a lógica é a mesma. 
Se quisermos usar o jargão da saúde, é preciso diagnosticar a doença corretamente e intervir antes que seja tarde demais. O IDSUS é uma radiografia. Espantosamente, a primeira radiografia feita nesse corpo gigantesco, disforme e cheio de desigualdades regionais que é o Brasil.

Certamente o índice não é perfeito. Deve ter deficiências aqui e acolá que, aposto, não demorarão a aparecer. Assim como ocorre com os instrumentos de avaliação da educação, o IDSUS terá pontos questionáveis. Ótimo que seja assim.

O que não dá mais para aceitar é justamente o não-debate. Saúde pública só vira assunto às vésperas de cada eleição ou quando alguém propõe aumentar impostos para financiá-la. Aí a grita é geral, a discussão é rasa, os dados são inexistentes e quase sempre impera a regra do “abafa o caso”.

 Não há pressão popular por melhorias na intensidade necessária. Nem a consciência de que, mais cedo ou mais tarde, o Brasil terá de fazer escolhas. Terá de decidir quais remédios, quais serviços e em que situações o SUS deve oferecê-los. 
A Constituição de 1988 determina que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado”. É um belíssimo instrumento de inclusão social. Na prática, porém, nenhum governo conseguiu cumpri-lo integralmente. A incapacidade de cumpri-lo não é explicada apenas pela corrupção ou pela má-gestão, como muitos se apressam em dizer. Ela é explicada pela realidade, pelo aumento absurdo da inflação na área de saúde, pelo envelhecimento da população e por tantos outros fatores.
É uma questão impopular, desagradável, mas os brasileiros precisam encará-la de frente.  
A saúde brasileira enfrenta três grandes problemas. O primeiro é conviver com doenças superadas pelos países ricos nos anos 60, como diarreia, tuberculose e hanseníase. O segundo é termos recursos comparáveis aos que as nações desenvolvidas gastavam nos anos 80, cerca de 8% do PIB. Mas a inflação na área da medicina aumentou tanto que hoje a França gasta cerca de 11% e os Estados Unidos 15%.

O terceiro problema é a demanda pela medicina do século XXI, cujas drogas, tratamentos e exames sofisticados custam mais que o sistema de saúde brasileiro é capaz de pagar. Se o país continuar investindo 8% do PIB em saúde, isso será suficiente apenas para manter o padrão de atendimento à saúde de que dispomos hoje. Para melhorar a qualidade dos serviços e bancar novas tecnologias e drogas mais caras, será necessário gastar mais.

“Em 2020, é provável que o Brasil esteja investindo 11% do PIB em saúde, mas precisa começar a trabalhar hoje para reduzir o desperdício de recursos”, diz o professor Marcos Bosi Ferraz, do Centro Paulista de Economia da Saúde, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

“Do contrário, mesmo que aumente o investimento, o país vai jogar dinheiro no ralo.” A pressão social por melhores serviços e a tentação de consumo de novas drogas e tecnologias só vão aumentar. E o envelhecimento dos brasileiros vai complicar ainda mais a situação. Os idosos com mais de 70 anos serão 17% da população em 2050. Hoje não chegam a 5%.

Todos os anos milhares de pacientes recorrem a ações judiciais para conseguir tratamentos não oferecidos pelo SUS. O atendimento universal e irrestrito previsto pelo SUS tornou-se uma utopia? “Alguém vai ter de assumir o ônus político de dizer que não é possível oferecer tudo a todos”, diz Ferraz. “Essa é uma visão romântica. Nenhum país dá tudo a todos.”

Os especialistas dizem que o Brasil precisa definir prioridades claras de saúde em vez de conviver com a ilusão de que o Estado está cuidando de tudo. Sabemos que essa é só uma ilusão, como o próprio IDSUS demonstra. Em tese, as portas estão abertas a todos (independentemente de idade, classe social, local de nascimento etc). Mas dificultar o acesso (ou não melhorá-lo intencionalmente) é uma forma de fechar as torneiras, como bem sabemos.

Um dos motivos para que grandes cidades não tivessem notas muito altas no IDUS é o fato de que grande parte da população é atendida por planos de saúde. O índice considera que a população total deveria ser coberta pelo SUS. É uma forma de avaliar se o acesso universal e irrestrito está mesmo sendo cumprido.

Se você acha que não precisa se preocupar com as condições do SUS, pense bem. Não é verdade que só os pobres usam o sistema público. Cerca de 45 milhões de pessoas têm planos de saúde no Brasil. Em geral, usam o plano apenas para consultas e internações de custo baixo ou moderado. Quando precisam de um serviço caro e de alta complexidade (transplantes ou drogas caríssimas contra o câncer), muitas delas recorrem ao SUS.

Ao fazer isso, oneram o Estado duplamente, já que normalmente descontam de seu Imposto de Renda suas despesas regulares com o plano privado. Trata-se de um direito de qualquer cidadão. Mas com isso o Poder Público subsidia os planos de saúde, ao assumir as responsabilidades por tratamentos mais complexos. Como o orçamento público é limitado, e os custos da medicina de ponta só crescem, o governo destina cada vez mais dinheiro para servir a classe média, cujo atendimento poderia ser pago pelos convênios particulares.

O SUS não é homogeneamente ruim. Ele é desigual e injusto. Um hipertenso que mora em São Paulo ou no Amazonas deveria ter o mesmo acesso aos recursos de saúde. Deveria conseguir realizar os mesmos exames, receber os mesmos medicamentos, ser orientado sobre como usá-los e como prevenir outros problemas de saúde. Como se sabe, isso não ocorre nem sequer dentro do mesmo município.

Para avançar na discussão, é preciso reconhecer que o Sistema Único de Saúde não é único. Há no Brasil dois SUS. O que funciona e o que fracassa. Essa conversa não pode estar restrita aos médicos. Nem aos economistas. É preciso sentir que ela diz respeito a mim e a você.  
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)
E você? Qual sua opinião sobre a saúde no Brasil? Conte sua experiência. Queremos ouvir a sua história.

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