Por mais que digam que as coisas evoluam, que a modernidade é inevitável, que o modo de pensar e de se comportar vão se globalizando, e as tecnologias se sobrepõem as antigas formas tradicionais, tudo isso, a meu ver, não rompe com o que está bem lá dentro da gente. E falo isso a partir do lugar onde piso - neste chão africano, ainda habitado e sentido por culturas milenares e com uma sabedoria profunda. Ainda há tribos, reis, anciãos e anciãs, curandeiros, feiticeiros; onde o nó familiar é a força determinante e não pronunciada na formação de uma pessoa, onde a tribo é a base por onde os acontecimentos da vida ganham significado e força para o agir, onde a consciência individual é diluída numa consciência coletiva, corporativa, integrada.
Maurício JardimDança durante celebração em Mitil-Maniquela, Lichinga, Moçambique.
Um ancião me dizia: "tem que nos falar não de um Deus que me salve, mas que nos salve, olhe para os lados, essas crianças, minha família, esses jovens sem esperança... estamos todos juntos, eu tenho fé, e se o Deus que nos fala olhar por nós, eu estarei dentro".
É por isso que numa celebração, onde cantamos, dançamos, ao som dos batuques e ‘ululus' produzidos pelas mulheres, é ali, juntos, que percebemos a força divina, um Deus que está em nosso meio. É nessa relação entre pessoas, que é muito orgânica, vivencial, verdadeira, essencial e existencial, é desse jeito, que nos tornamos ouvidos e coração para experimentar o amor de um Deus Comunhão. Esse não seria o espaço onde a Trindade se identificaria por ela mesma ser a relação perfeita? Ela não dançaria em meio a esse povo que se vê um, em sintonia, num só coração, mesmo diante de suas fraquezas e descompassos?
Onde está Deus quando o buscamos só? É mais difícil. Os Santos já nos falaram e nos deixaram inúmeros escritos... Lembro da imagem no missal romano, no dia de todos os santos, eles todos juntos, como que contando um para o outro suas dificuldades na busca e como que nos dizendo: "Estamos juntos! É bem melhor, e hoje cantamos nossas lutas e fraquezas, e rimos juntos, e quiçá estivéssemos assim aí, seria bem melhor..."
Sem mal entendidos quanto à busca pessoal, ou a oração pessoal. Não estou indo contra. Mas aqui neste pedacinho de Moçambique, percebo o que já sentia dentro de mim: uma força unitiva, que nos atrai, nos envolve uns aos outros, e que nos une numa mesma busca, mesma fé, mesma espera. Tudo isso sentimos juntos numa celebração da fé e da vida. Chamamos isso de diversas maneiras: fraternidade, comunidade, irmãos na fé, companheiros...
Maurício JardimAlmoço partilhado na comunidadeE quando o Espírito Santo desceu naquele dia... ah! Que gente unida a rezar na espera confiante! Uma família que nunca mais se separou. Tanto, que até hoje recordamos como se fosse hoje, como presença confiante do passado que não se dissolve. Juntos recebemos a mesma força renovadora, que nos transforma e toca no que está bem lá dentro da gente... e de cada cultura, de cada povo. O mesmo Espírito que me faz ver aqui em África um desejo pela vida, mesmo diante de tanta morte, tanta injustiça; a semente do Verbo Divino sendo pisoteada, dilacerada. E mesmo assim, pelas brechas, fendas, e cantos que sobram, o povo que tem fé se dobra com a semente nas mãos, e as plantam com o suor que cai de seus corpos sofridos. A colheita... é esperança, confiança, em meio a dor... e Aquele que nos fez humanos, também Ele nos ensinou. Da morte, mostrou-nos a vida. E com a vida, libertação.
E nas celebrações vejo sorrisos, vejo os pés traçarem compassos e a poeira levantar do chão - como incenso de oblação, e vejo as cores se entrelaçarem, as mãos se unirem e se tornarem força e perseverança. A Trindade Santa dança com a gente, nos seduz, nos enche de carinho. Mesmo nós, aos tropeços, Ela nos ensina, nos acalenta. E o povo sente-se mais forte, orante, crente. Somos uma parte desta Comunhão Divina que nos torna livres, nos faz dizer de nós mesmos, no cotidiano da vida, uma busca pelo ‘nós'. Pela dança do ‘nós'.
* Rodrigo Schüler de Souza, é padre missionário em Moçambique, Fidei Donum do Regional Sul3 - CNBB (Rio Grande do Sul).
Fonte: Comunicação COMIRE Sul 3
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