24/06/2012

Pratos para quem tem estômago


Um curioso movimento culinário elevou os miúdos ao status de iguaria. Os defensores do meio ambiente estão por trás disso

NATÁLIA SPINACÉ
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APETITOSO? Acima, timo de cordeiro, preparado pelo chef Alberto Landgraf (abaixo), do restaurante Epice, em São Paulo. Ele afirma que é preciso refinamento para servir miúdos (Foto: Camila Fontana/ÉPOCA)
Chef Alberto Landgraf (Foto: Camila Fontana/ÉPOCA)
Imagine o seguinte cardápio. De entrada, bruschetta de moela de frango. Prato principal, lasanha de cabeça de porco. Para alguns, esse poderia ser o menu de reality shows ao estiloNo limite. A saborosa verdade é que esses pratos estão entre o que há de mais fino na gastronomia. Verdadeiras iguarias. “Deixar um filé saboroso é fácil. Transformar cabeça de porco em algo gostoso é um desafio”, diz Alberto Landgraf, chef do restaurante paulistano Epice.
O prato que ilustra esta reportagem, criado por Landgraf, sugere a envergadura da nova aventura culinária: é timo de cordeiro com picles de échalote, vinagrete de pinhole e creme de foie gras. Traduzindo para os não iniciados nas artes culinárias (e na fisiologia animal), o timo é um órgão ligado à produção de células de defesa do organismo, localizado no tórax, perto do coração e dos pulmões. À mesa, é guarnecido por picles feitos com um tipo de cebola comum na Europa, vinagrete da semente de um pinheiro da região mediterrânea e creme de fígado de pato. Sim, são os tradicionais miúdos, bem conhecidos da culinária brasileira, mas com apresentação sofisticada graças a uma nova tendência internacional: a cozinha nose to tail (algo como “da cabeça ao rabo”, na tradução do inglês).

O novo movimento ganhou força por ser ecologicamente correto. Prega que é falta de respeito e desperdício matar um animal e não aproveitar todas as suas partes. Restaurantes tradicionais paulistanos, como o Sallvattore e o Mello & Mellão Trattoria, já aderiram.Nas duas filiais do Prima Bruschetteria, em São Paulo e no Rio de Janeiro, o chef Erik Nako prepara mensalmente um festival de miudezas. “A ideia é resgatar nossas raízes e mostrar que essas partes são saborosas”, diz Nako. O badalado chef Alex Atala faz, desde o ano passado, uma galinhada aos sábados num de seus restaurantes, o Dalva e Dito. No ensopado, vão moela, coração e pescoço de frango. No bar Pirajá, em São Paulo, o rosbife de língua ocupa lugar de destaque no cardápio.
Lá fora, o americano Incanto, em San Francisco, faz sucesso servindo apenas miúdos e cortes diferentes. Ganhou duas estrelas – do máximo de três – no célebre guia Michelin. Em Nova York, o DBGB, do chef Daniel Boulud (uma estrela no Michelin), serve um lanche feito com embutido à base de sangue e cabeça de porco.
Os chefs da cozinha nose to tail acham que é um desrespeito matar animais e não aproveitar todas as partes
Conseguir ressuscitar os miúdos nos cardápios brasileiros é um feito. Aqui, o hábito de comer partes consideradas menos nobres é estigmatizado, visto como sinônimo de culinária pouco refinada – enquanto, na Europa, a tradição se consolidou por causa da escassez de carne durante as duas grandes guerras. Mesmo na Argentina e no Uruguai, onde nunca houve escassez de carne, consomem-se glândulas e tripas com naturalidade. No Brasil, é diferente. O preconceito, ou falta de hábito, faz com que a aceitação da culinária de miúdos ainda seja tímida. Landgraf, do Epice, prepara por semana cerca de 20 pratos de miúdos, em comparação com 200 da cozinha tradicional.
A dificuldade para encontrar os órgãos internos e os cortes impopulares são outra barreira na preparação dos pratos. Como a procura é pouca, quase nenhum açougue oferece essas peças. Elas são encontradas apenas em estabelecimentos menores, em bairros afastados. Como a matéria-prima é escassa e a mão de obra para prepará-la é grande, os preços sobem. Os pratos de miúdos em restaurantes finos não custam mais barato que os cortes nobres.
Mesmo assim, os chefs sentem-se motivados pelo desafio culinário. A satisfação dos clientes é o prêmio. O engenheiro Fábio Moon, de 25 anos, descobriu as delícias dos miúdos quando morava em Nova York. Hoje, chega a fazer dez refeições por semana à base dessas iguarias. “Via meus amigos comer, mas ficava desconfiado”, diz. Depois que experimentou um pé de porco empanado, virou fã. “Achei o sabor e a textura sensacionais.”
“Não é um tipo de culinária fácil, intuitiva”, afirma Diego Barreto, professor de cozinha clássica do Senac. O tempo de cozimento deve ser preciso, pois qualquer erro afeta a textura da carne. É preciso acertar nos temperos, já que o gosto forte exige combinações que realcem e disfarcem o sabor na medida certa. Os cuidados antes do cozimento são fundamentais, e nem sempre agradáveis. Os chefs também precisam ter estômago. A orelha do porco deve ser depilada, lavada e escaldada. “Como a cartilagem humana é semelhante à dos animais, muitas pessoas têm a impressão de que estão mexendo com carne humana”, diz a chef libanesa Anissa Helou, de 60 anos, autora de um livro de receitas de miúdos.
O chef britânico Fergus Henderson, um dos maiores entusiastas do movimento, autor do livro The whole beast, diz que os chefs devem se acostumar, porque preparar miúdos tende a ser valorizado. “É uma maneira única de desenvolver habilidades e sair da mesmice dos restaurantes”, diz. O resultado, afirma ele, pode ser mais saboroso do que um filé-mignon: “É preciso acostumar o paladar, deixando o preconceito de lado e tendo coragem de provar”.
  

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