Hoje, na seção Mulheres pelo Mundo, a jornalista Elisa Martins, que vive no México, fala de suas saudades e angústias a partir de um reencontro familiar no Rio.
Minha sobrinha não me (re)conhece. Toda vez que vou ao Rio, ela me olha com aquela cara de “conheço você de algum lugar”, me apresenta a Branca de Neve, Minnie, Senhor Batata e todos os seus brinquedos, mas com um quê de interrogação de quem é aquela prima-tia que fica por perto alguns dias e depois vai embora, para voltar só uns meses depois. Os pais mandam fotos, atualizam as novidades. Mas não tem jeito, imagem não substitui abraço, dá saudade e certa frustração pelo fato da ausência vencer a frequência e dificultar que se estreitem mais os laços. Com ela e tudo o mais o que fizer parte de um novo Rio do qual eu já não faço parte a ponto de saber as ultimas fofocas de Avenida Brasil e de escutar o tchu tcu tcha. Toda escolha traz também uma perda, certo? É por aí. Umas mais doídas que outras, certamente.
Minha sobrinha ainda é pequena, mas um dia vai saber – isso espero – que essa prima-tia já brincou muito com o pai dela e os outros tios. Era uma época em que não havia tanta variedade de brinquedo, mas a imaginação sobrava. Surfávamos descendo pela grama da Quinta da Boa Vista, nadávamos no Recreio quando ainda parecia praia deserta, comíamos chocolate Surpresa, líamos Cascão e Cebolinha e ríamos com o avô fã de novelas quando Adriana Esteves ainda nem sonhava em ser Carminha.
Meu avô é o rei das minhas lembranças de infância. Foi avô com “A” maiúsculo, daqueles que era mais moleque do que os próprios netos. Levava à praia, à Floresta da Tijuca, incentivava a se lançar no mundo e na vida, sem perder a ternura jamais. O avô com cara de brabo e coração mole sacava o lencinho de pano, emocionado nas apresentações da escola dos netos. Tinha um carro com porta-malas mais farto do que o arsenal do Magayver, de onde tirava corda para descer barranco, calça pronta para substituir o bermudão caso a etiqueta exigisse, camisa vermelha para sacudir quando achava que estávamos muito longe no mar. Sempre voltávamos. Ele acompanhou todas as etapas da minha vida, ralhou em algumas, apoiou a maioria, mas nunca saiu de perto. Tem uma importância tão grande que não cabe num post. Mal cabe numa vida inteira.
Hoje, como a minha sobrinha, ele não me (re)conhece. Sua cabeça já não está à altura da vida que viveu, as memórias estão confusas, o corpo aprisionou as lembranças em algum lugar inacessível. Mas eu sei que estão lá. E eu sei quem ele é. Minha sobrinha já não vai saber quem é o “biso” como eu, o pai e os tios dela soubemos. Mas, se depender de nós, ela vai ouvir as histórias, ver as fotos, imaginar além do olhar perdido. E ter suas próprias lembranças de um novo mundo inteiro que ela vai desbravar e das pessoas que ela ainda vai conhecer.
Entre a melancolia e a alegria, eu repito a mim mesma que a vida é esse ciclo em que nada é definitivo. Aproveitamos cada minuto com a consciência de que os momentos maravilhosos viram ótimas lembranças. Vividos com intensidade, de preferência, intermináveis. Os maias já acreditavam há séculos que nossa existência nada tem a ver com um final. Sua obsessão pelo tempo vinha da busca por permanecer nele – e não do medo de perecer num apocalipse.
Por isso, vou combinar com a minha sobrinha: enquanto ela cresce (não tão rápido, hein, que fica difícil de acompanhar), o “biso” se eterniza. E muito, muito além da duração do tchu tchu tcha.
Revista Época
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