O Vingador do Futuro, o novo, que estréia hoje no Brasil, deveria ter outro nome. Não é questão de má tradução. Ele só não é o esperado (e talvez desnecessário) remake do filme homônimo de 1990. Apague da memória Schwarzenegger, as paisagens marcianas, o humor e as cenas grotescas de alienígenas que viraram um clássico da ficção científica. Estamos falando de outro longa-metragem. De algo mais sério, acelerado e pretensioso. Se é melhor ou pior que o antigo, trata-se de uma discussão descabida. Mas a fim de esclarecer algumas coisas, já adiantamos: não, ele não é melhor.
A adaptação do diretor Len Wiseman, o mesmo de Anjos da Noite e Duro de Matar 4.0, tem roteiro ousado. Quase não se reconhece a história original que inspirou o filme, o conto “Lembramos para você a preço de atacado”, de Phillip K. Dick, publicado em 1960. Se já havia alguma, digamos, licença autoral no filme de Paul Verhoeven doze anos atrás, agora temos uma mudança completa da alegoria literária. Fãs conservadores podem não gostar. Já explicamos por que. Antes, um breve contexto.
Para quem não viu ou não se lembra do primeiro filme e da história original, o conflito da trama ocorre quando Douglas Quaid, um trabalhador de classe média, passa a ter pesadelos recorrentes e fragmentados; uma espécie de missão especial em Marte. O conteúdo de seus sonhos, aos poucos, atormenta sua vida cotidiana e faz com que ele procure uma empresa capaz de implantar essas memórias falsas em si. O raciocínio, um tanto freudiano, seria satisfazer seu desejo inconsciente para se sentir uma pessoa mais realizada.
Nessa nova adaptação, porém, não há Marte. Nem qualquer outro planeta estrangeiro. Todo o filme se passa numa Terra arrasada, de clima Blade Runner, dominada por grandes corporações de tecnologia e um governo continental repressor (sim, já vimos esse filme algumas vezes antes).
O efeito, assim como o que Cristopher Nolan buscou em Batman, é aproximar o espectador de uma história que estaria a anos-luz de distância. Embora futurista, o ambiente tem muitos elementos que lembram a realidade terráquea. Estão lá cidades com distribuição desigual de riqueza, prédios imponentes em contraste com moradores de rua, homens e mulheres dependentes da tecnologia, alta densidade populacional, entre outras questões bem conhecidas do nosso tempo.
Na Terra do novo Vingador do Futuro, há apenas dois continentes: a União Federativa da Bretanha, correspondente a Europa, moradia da elite; e a Colônia, dos oprimidos, onde hoje é a Oceania. A primeira explora a segunda. O principal meio ou o grande símbolo dessa exploração é um veículo chamado A Queda, que liga os dois continentes em poucos minutos. De carona nele, trabalhadores da megapopulosa Colônia vão aos centros desenvolvidos do outro continente para tocarem seus empregos de baixo prestígio. Enquanto isso, o governador da União Federativa da Bretanha planeja, atrás das cortinas, eliminar os habitantes da Colônia para que seus conterrâneos possam voltar a se expandir. Uma briga por terras, enfim. Não é das histórias mais convincentes hoje. Mas é fácil criar uma associação com o neocolonialismo do século XIX.
O grande destaque do filme fica por conta dos detalhes desses cenários fictícios. Na Colônia vemos uma projeção do que seria uma expansão da China para baixo, pegando parte da Austrália. Há gadgets por todos os cantos, uma incômoda concentração de pessoas, comércios informais, propagandas luminosas, prédios estreitos, muito barulho e uma grande miscigenação. Surgem marcas convincentes de megacompanhias, novos estilos de arquitetura e uma ambientação que impressiona pela vivacidade. As mesmas minúcias valem para o outro continente. Lá há carros futuristas, construções gigantescas e intensa robotização dos serviços. Nesses cenários, o que se vê é muita ação. Todas as cenas carregam um tom de videogame — há uma cena memorável de saltos em plataforma — e, para a infelicidade dos que não gostam de estrondos, também de produções explosivas a la Michael Bay.
Muita ação, pouca graça
É um fato: Wiseman transformou O Vingador do Futuro em um filme de ação. Gostemos ou não, ele tem seus méritos. O uso da gravidade e os momentos de silêncio depois de uma extrema poluição sonora, por exemplo, são bons acertos. Conseguem inovar e mantêm um clima vertiginoso bem particular — ao sair do filme, este que escreve foi descer uma escada rolante ainda com a sensação de estar em queda livre.
Mas é certo o exagero nas cenas de escapadas, o que revela uma fraqueza de roteiro. É tanta correria que não sobra fôlego para piadas. Nenhuma tirada, entre pouquíssimas tentativas, tem destaque. Colin Farrell, com sua eterna expressão de coitado, comprimindo suas sobrancelhas, não parece ter uma verve cômica. Coisa que o canastrão Schwarzenegger tem de sobra.
Nessa diferença mora uma questão fundamental para esse novo filme não ser tão bem recebido por público e crítica nos Estados Unidos, país em que estreou semana passada: Wiseman se leva a sério demais. Percebe-se no exagerado tom político e catastrófico que tenta dar a obra. Três exemplos disso: 1) faz críticas à manipulação de informações, 2) aborda a truculência de regimes de governos autoritários e 3) desmascara discursos anti-terroristas que seriam na verdade uma máscara para encobrir uma vontade de etnocídio. Seriam questões interessantes a se trabalhar num filme, sem dúvida. O raso aprofundamento delas, no entanto, torna o filme uma reverberação de clichês de ficção científica. Aqueles mesmos lugares-comuns que apontam o progresso tecno-científico como um mal, uma forma sanguinária de conservar o poder.
O que é real?
Ainda que menos espirituoso que o seu antecessor, o Vingador 2012 traz de forma mais elaborada a discussão que Phillip K. Dick, autor do conto que inspirou as adaptações, dizia conduzir toda sua obra: afinal, o que é a realidade? Questiona mais: até que ponto podemos confiar em nossas memórias?
O filme labiríntico de Wiseman é fiel a essa filosofia. Mesmo aqueles que estão acostumados com a história chegam a questionar quem está falando a verdade e, sobretudo, quem é o protagonista. Para reforçar o clima de dúvida, os diálogos são conduzidos por uma boa dose de ambiguidade. Esse jogo de mistérios e revelações se estende por todo o filme. Até o meio, cativa. No fim, perde-se um pouco no excesso de amarrações/ explicações na história.
Ainda assim, a sensação de estranhamento é muito maior nessa nova adaptação, o que, levando em conta os objetivos de Dick, é um grande acerto.
Guilherme Pavarin
Revista Época
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