27/10/2012

A Fortaleza do século XIX

Um conto no passado. Cadeiras na calçada, romance de Raymundo Netto, é uma viagem no tempo, um encontro com uma Fortaleza poética e provinciana que só a imaginação pode reconstruir

De mãos dadas com Américo Lopes, o protagonista e narrador, passeamos pelas calçadas do início do século XX e andamos, assim, pelas ruas ´descalças´ de uma cidade menina que parece se fazer mulher aos olhos do leitor.

Fortaleza: Esquina da Rua Pedro Borges com Floriano Peixoto, em 1950. Arquivo Nirez.


No livro de Raymundo Netto, o narrador é um senhor de mais de 90 anos que,´ após receber um pacote de cartas de seu amor de juventude, compreende a razão de ter vivido tanto, e resolve, no ano de 1998, contar a sua história como um modo de eternizar seu romance interrompido pelo destino. Trata-se de uma narrativa cíclica, cujo introito pode perfeitamente ser colado ao final para atar as pontas do novelo da vida do personagem: (Texto I)

Singularidades

A narrativa memorialista, de que se vale o autor, tomou impulso nos anos de 1970, com o romance-reportagem, uma tendência pós-moderna que se alicerça na transdiscursividade. Segundo Walnice N. Galvão (2004), o memorialismo, há tempos praticado no país, deu um salto de qualidade ao surgir a obra de Pedro Nava: (Texto II)

A narrativa biográfica tem, pois, esse mérito de reconstituir, utilizando a trajetória de um personagem real, a trajetória de uma geração, a história de uma época e de um espaço.Assim ocorreu com Pedro Nava, (Baú de Ossos, 1972;Balão Cativo, 1973; Chão-de-Ferro, 1976; Beira-Mar, 1978; Galo-das-Trevas; 1981; O Círio Perfeito, 1983; Cera das almas, póstumo, incompleto, 2006) que juntou imaginação e memória nos relatos de suas experiências; com Marcelo Rubens Paiva, em seu Feliz ano velho, livro que conta o acidente que o deixou paraplégico e os dias que o sucederam, entre outros que, ao modo de Graciliano Ramos (Memórias do Cárcere), Érico Veríssimo (Solo de Clarineta) e Raquel de Queiroz, transfiguraram para a literatura episódios de suas histórias. No Ceará, destaca-se Milton Dias com suas crônicas de memórias.

Essa opção por narrar-se, ou seja, transformar-se em personagem, é curiosa e suscita uma reflexão sobre o significado da experiência vivida tanto para quem a expõe, no momento em que a expõe, pois já não é a mesma pessoa que viveu os fatos, como para o leitor. Marta Campos (1992 p.28-9) faz algumas considerações a esse respeito:(Texto III) O livro de Raymundo Neto, embora traga uma narrativa autobiográfica, não confunde o narrador com o autor.

O velho Américo, personagem fictício, conta sua trajetória desde a infância, na primeira década do século XX, quando perde os pais e passa a ser criado por uma tia. Paralelamente, conta-se a história da cidade, tendo-se, dessa forma, dois personagens centrais: Américo e a cidade de Fortaleza. A onisciência do narrador em 1ª pessoa não torna o relato inverossímil, pois desenrolam-se fatos passados, utilizando-se assim de um meio fundamental para tornar o relato crível. Tudo já foi consumado, vivido.

O personagem Américo é ficcional, mas a cidade e sua história são reais e fundem, num só espaço e tempo, verdade e ficção, conduzindo o leitor nessa ambivalência que o leva a duvidar se Américo é apenas um ser de papel.

TRECHOS

TEXTO I

No quarto, passei a cismar sobre a minha vida, toda ela, nos momentos e caminhos que me fizeram ser o que hoje eu sou

Recapitulando os desastrados anos da minha vida, conclui o porquê de ainda estar vivo. Precisava saber, não poderia partir desse mundo sem saber, e agora finalmente eu estava pronto. Abri o lenço à minha frente e reconheci a letra feita às pressas com o furor de quem está arquitetando um grande plano de paixão: Não esqueças de me lembrar que não foi apenas um sonho! "Voltarei a ti...Sempre!" "Voltarei a ti...Sempre!" ... por um momento senti-me naquele quarto acolhido nas asas e no sorriso de Olívia. Peguei o lenço e busquei seu cheiro: não havia nenhum, não havia nada! Pobre Américo, pensei, que sorte o destino lhe pregara. Chorei copiosamente um pranto esquecido. (p.144)

TEXTO II

"com uma capacidade invejável de reconstituir os ambientes de sua ancestralidade até várias gerações, e criando com liberdade o que não podia propriamente reconstituir, Pedro Nava acaba por fazer também um pouco de história imaginária, ou do imaginário. Ergue-se ante nossos olhos o passado de Minas".

TEXTO III

"Quando um autobiógrafo confere um significado a um tempo passado, ele certamente optou por um dos muitos significados que o acontecimento pode ter tido ou talvez tenha conferido ao fato um significado totalmente novo, que ele só adquiriu muito tempo depois.

Este significado, por sua vez, revela muito mais sobre a situação do autobiógrafo no momento da escritura do que sobre o homem à época do acontecimento".

FIQUE POR DENTRO

A análise das narrativas

No gênero prosa, as narrativas mais cultivadas são o conto, o romance e a novela. Em termos mais convencionais, o romance é uma narrativa longa, que comporta em seu bojo um número de personagens maior do que os que costumam habitar o conto e a novela. Gira em torno de sua trama também mais conflitos, da mesma forma como o espaço e o tempo sofrem considerável dilatação. Ainda que o romance já haja sido composto no século XVI - neste período, destaca-se a grande obra de Miguel de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha -, a consagração desse gênero de ficção, em especial no Brasil,ocorreu a partir do século XIX, quando, uma vez iniciada a nossa literatura propriamente dita, com o assomar da estética romântica (leiam-se as obras de José de Alencar) e, depois, a sua sedimentação com os passos do Realismo, (neste caso, impõem-se os nomes de Machado de Assis e de Aluísio Azevedo), passou a refletir as inquietações de nossa sociedade, ora com o intento de fixação da nossa identidade enquanto povo e nação, ora com a crítica aos costumes e ao poder, ora com o desvendamento das ondulações psicológicas.

AÍLA SAMPAIOCOLABORADORA*

Professora da Unifor*
 

Diário do Nordeste

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