27/10/2012

LITERATURA: Outros gracilianos



Dênis de Moraes*
O bafo quente começava a se despedir da pequena Quebrangulo, cidade do agreste alagoano. Eram quatro horas da tarde e restava o mormaço. Como fazia todos os dias, Sebastião Ramos de Oliveira despachava em sua modesta loja de tecidos. Mas aquele era 27 de outubro de 1892, o dia em que o discreto comerciante largou o balcão às pressas para, enfim, conhecer Graciliano – o primeiro de seus dezesseis filhos com a jovem Maria Amélia Ferro e Ramos. 

Foi assim, em casa, como tantos nos confins do Brasil do final do século XIX, que há 120 anos nasceu o escritor Graciliano Ramos de Oliveira., responsável por algumas das obras mais importantes da literatura brasileira. Começa hoje a série de homenagens ao autor de Vidas Secas. Seminários, lançamentos e relançamentos de livros sobre o legado e a vida do escritor, além da obra esmiuçada pela próxima Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), compõem a programação que se estende por 2013, quando também serão lembrados os 60 anos de morte de Graciliano. 

Aproveitando as efemérides, o relançamento da biografia O velho Graça (Boitempo), de onde saíram os detalhes do nascimento de Graciliano, no parágrafo de abertura deste texto. Lançada 20 anos atrás, por ocasião do centenário do escritor, o trabalho ilumina novas nuances de Graça, como era chamado pelos amigos. Traz entrevistas pouco conhecidas daquele que sempre foi avesso à exposição, novos documentos e reconta episódios que tentam desmistificar a imagem austera que ficou do autor. Sobre a pesquisa, as novidades da biografia e algumas das facetas de Graciliano, O POVO conversou com o biógrafo Dênis de Moraes. 

O POVO - A partir de que momento surgiu o interesse do sr. em escrever uma biografia de Gracialiano Ramos?
Dênis de Moraes - Sempre achei que o escritor Graciliano é satisfatoriamente conhecido pelos leitores e pela crítica literária, mas o homem que se ocultava por trás dele merecia ser revelado em suas múltiplas dimensões, ainda mais porque em 60 anos viveu, na verdade, 120, tantas foram as aventuras e desventuras que atravessaram sua jornada. 

O POVO - Como foi a pesquisa, quanto tempo levou a escrita e a publicação? 
Dênis de Moraes - A pesquisa durou mais de dois anos, envolvendo dezenas de entrevistas com amigos, familiares e contemporâneos (hoje isso seria impossível, pois, infelizmente, muitos deles já não estão mais entre nós), consultas a arquivos públicos e privados no Rio de Janeiro, São Paulo e Maceió, amplo estudo bibliográfico de e sobre Graciliano, releituras de sua obra e buscas em coleções de jornais nos quais colaborou. Há 20 anos não havia internet e nem arquivos multimídias, como os agora existentes; as limitações eram bem maiores para acessar materiais documentais. 

O POVO - E agora, 20 anos depois, como veio a iniciativa do relançamento? Além de trechos de entrevistas que Graciliano concedeu, que outros inéditos foram acrescentados à biografia?
Dênis de Moraes - Consegui localizar as cinco entrevistas mais expressivas que Graciliano concedeu ao longo da vida. Ele era esquivo e costumava driblar o assédio de repórteres dizendo que não tinha nada de útil a dizer. Os jornalistas Francisco de Assis Barbosa, Homero Senna, Newton Rodrigues, João Condé e Joel Silveira, durante a década de 1940, conseguiram a proeza de dobrá-lo e obtiveram declarações interessantes sobre o seu processo de criação (reescrevia obsessivamente os textos e cortava o que chamava de “gorduras”, com uma régua guiando seu lápis implacável) e o papel do escritor na sociedade (ressaltava que a literatura deve preservar sua autonomia frente à política, sem deixar de refleti-la). Outro acréscimo foi a carta que Graciliano chegou a redigir e jamais enviou ao então presidente Getúlio Vargas, em 1938. Um desabafo sobre as dificuldades enfrentadas durante e depois do período da injusta prisão (entre 3 de março de 1936 e 10 de janeiro de 1937), sem processo ou culpa formada. 

O POVO - Graciliano era um feroz crítico da própria obra. Ele chegou a dizer que seu trabalho literário nada valia, que “a rigor, até, já desapareceu”. No entanto, essa obra parece se firmar cada vez mais entre os grandes feitos da literatura brasileira. A que o sr. atribui essa força crescente da obra de Graciliano Ramos? 
Dênis de Moraes - Era um feroz crítico da própria da boca para fora. Graciliano tinha plena consciência de seu valor. Mas dissimulava os sentimentos, como sertanejo tímido e desconfiado que era. Ocultava-se na timidez e no excesso de autocobranças, que nada mais eram senão a evidência de sua férrea determinação de aprimorar-se e superar-se como escritor. Penso que poucos escritores de sua geração demonstraram tanta consciência sobre o papel social de um homem de letras quanto Graciliano. Atribuo a dois fatores principais a força crescente de sua obra: ao seu talento literário – era capaz de retratar esplendidamente situações e sentimentos com incrível economia de palavras e imagens – e ao compromisso inabalável com a condição humana, sempre solidário aos excluídos e aos que sofrem com as explorações de qualquer natureza. 

O POVO - Graciliano chegou a ser prefeito de Palmeira dos Índios, foi comunista e sempre fez críticas à política brasileira, às relações de poder presentes nessa política nacional. Pergunto: como era o Graciliano Ramos administrador público? 
Dênis de Moraes - Foi um prefeito revolucionário, ético, honesto, empreendedor, que deu prioridade às áreas periféricas e pobres de Palmeira dos Índios. Pôs fim à corrupção e ao clientelismo na Prefeitura, impondo rígido controle sobre as finanças e os gastos públicos. Cumpriu à risca o Código de Posturas, alterando para muito melhor a fisionomia urbana. Os comerciantes que sujavam ou ocupavam irregularmente as calçadas tiveram que se enquadrar. Os que ousavam desrespeitar o Código eram advertidos. Na reincidência, multados. Até Sebastião Ramos, pai de Graciliano, foi multado por ter a sua loja de tecidos descumprido as normas. “Prefeito não tem pai, a lei vale para todos”, disse-lhe o filho.

Confira entrevista na íntegra
O Povo 
Raphaelle Batista


*Autor de O Velho Graça, relançado agora em edição ampliada pela
O escritor rigoroso foi também um prefeito implacável: multou próprio pai


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