Os 81 senadores da República irão eleger daqui a pouco (atualização: Renan foi eleito às 14h30 com 56 votos) como presidente da Casa um colega denunciado na última semana pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal pelos crimes de peculato (desvio de dinheiro público, 2 a 12 anos de cadeia), falsidade ideológica (1 a 5 anos de cadeia) e uso de documento falso (2 a 6 anos de cadeia). ÉPOCA teve acesso na noite de quinta-feira (31), com exclusividade e na íntegra, à devastadora denúncia oferecida pelo procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, contra o senador Renan Calheiros, do PMDB de Alagoas, no dia 24 de janeiro. Gurgel é taxativo: Renan apresentou, ao Senado da República, notas frias e documentos falsificados para justificar a origem dos recursos que o lobista de uma grande empreiteira entregava, em dinheiro vivo, à mãe de sua filha, a título de pensão. Está provado, finalmente, que Renan não tinha condições financeiras de arcar com a pensão – e que não fez, de fato, esses pagamentos à mãe de sua filha. De quebra, descobre-se na denúncia que Renan desviou R$ 44,8 mil do Senado. Nesse caso, também usou notas frias para justificar o desfalque nos cofres públicos.
Se condenado pelos três crimes no STF, o novo presidente do Senado poderá pegar, somente nesse processo, de 5 a 23 anos de cadeia – além de pagar multa aos cofres públicos, a ser estipulada pela corte. (Há, ainda, outros dois inquéritos tramitando contra Renan no STF.) A denúncia de Gurgel está no gabinete do ministro Ricardo Lewandowski desde segunda-feira. Caberá a ele encaminhar, aos demais ministros do STF, voto favorável ou contrário à denúncia. Lewandowski não tem prazo para dar seu voto.
A denúncia de Gurgel, fundamentada em anos de investigação da PGR e da PF, centra-se no episódio que deu início ao calvário de Renan, em 2007, quando ele era presidente do Senado e, após meses de incessantes denúncias, viu-se obrigado a renunciar ao cargo – mas não ao mandato. Naquele ano, descobriu-se que o lobista Cláudio Gontijo, da empreiteira Mendes Júnior, pagava, em dinheiro vivo, R$ 16,5 mil mensais à jornalista Mônica Veloso, com quem o senador tivera uma filha. No mesmo período em que o lobista Gontijo bancava as despesas de Renan, entre 2004 e 2006, a Mendes Júnior recebia R$ 13,2 milhões em emendas parlamentares de Renan destinadas a uma obra no Porto de Maceió – obra tocada pela mesma Mendes Júnior. Abriu-se um processo no Conselho de Ética no Senado. Renan assegurou aos colegas que bancara a pensão do próprio bolso, e apresentou documentos bancários e fiscais que comprovariam sua versão. O dinheiro seria proveniente de investimentos do senador em gado. A denúncia da PGR derruba por completo a versão bovina de Renan – e mostra que, para se montar a versão fajuta, Renan cometeu muitos crimes.
“Em síntese, apurou-se que Renan Calheiros não possuía recursos disponíveis para custear os pagamentos feitos a Mônica Veloso no período de janeiro de 2004 a dezembro de 2006, e que inseriu e fez inserir em documentos públicos e particulares informações diversas das que deveriam ser escritas sobre seus ganhos com atividade rural, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, qual seja, sua capacidade financeira”, diz Gurgel na denúncia (leia o trecho abaixo). Para piorar: “Além disso, o denunciado utilizou tais documentos ideologicamente falsos perante o Senado Federal para embasar sua defesa apresentada (ao Conselho de Ética)”. “Assim agindo”, diz Gurgel, “Renan Calheiros praticou os delitos previstos nos artigos 299 (falsidade ideológica) e 304 (uso de documento falso), ambos do Código Penal.”
"Espantosa lucratividade"
Como Renan apresentara ao Senado extratos bancários capengas, sem identificação de entradas e saídas de recursos, a PGR conseguiu, com permissão do Supremo, quebrar o sigilo bancário dele. Uma perícia da Polícia Federal nas contas do senador apontou que “os recursos indicados por Renan Calheiros como sacados em dinheiro não poderiam amparar os supostos pagamentos a Mônica Veloso no mesmo período, seja porque não foi mencionada a destinação a Mônica, seja porque os valores destinados ao denunciado não seriam suficientes para suportar os pagamentos”. Em português claro: Renan não tinha saldo em conta para pagar a pensão, ao contrário do que alegara.
Nesse caso, os peritos da PF não deixaram margem à dúvida. Em 2009, esmiuçaram detidamente os documentos bancários e fiscais. Dos 118 cheques relacionados por Renan como fontes dos pagamentos da pensão, 66 foram destinados a outras pessoas e empresas, e outros 39 tinham como beneficiários o próprio senador. “No verso de alguns destes cheques destinados ao próprio Renan, havia manuscritos que indicam o provável destino do dinheiro, tais como ‘mão de obra reforma da casa’, ‘reforma Barra’ e ‘folha de pagamento’, o que diminui ainda mais sua capacidade de pagamento”, escreve Gurgel.
Renan garantira ao Senado que sua “capacidade de pagamento” advinha de seus investimentos em gado. A investigação da PGR demonstra que a versão de Renan é um disparate fiscal, bancário e até mesmo matemático. Há discrepâncias na quantidade de animais vendidos, assim como nos destinos deles. Em 2006, por exemplo, as notas de Renan registram a venda de 765 animais, mas as chamadas guias de trânsito animal – um documento adicional a esse tipo de transação – informam que 908 foram transportados. Ao confrontar datas e quantidades, peritos da PF descobriram que as informações de venda e entrega coincidem apenas no caso de 220 animais. Há mais irregularidades. Algumas guias de trânsito de animal apresentadas por Renan nem eram dele, mas de outros vendedores de gado. As notas fiscais apresentam falhas, como falta de selos fiscais de autenticidade, campos deixados em branco e informações rasuradas. Duas empresas que, segundo os documentos, teriam comprado gado de Renan, nem estavam habilitadas para isso – e estavam envolvidas em fraudes tributárias. José Leodácio de Souza, que teria comprado 45 bois, negou, em depoimento, ter tido qualquer negócio com Renan – o que “confirma a falsidade ideológica dos documentos apresentados”, nas palavras de Gurgel.
Segundo a investigação da PGR, Renan não registrou quaisquer despesas com o custeio de suas atividades como pecuarista. É como se os 1.950 bois de Renan, por mágica, pastassem durante anos sozinhos, abandonados – sem precisar, por exemplo, do trabalho de peões ou veterinários. “A ausência de registro de despesas de custeio (…) implica resultado fictício da atividade rural, o que explica a espantosa ‘lucratividade’ obtida pelo denunciado entre 2002 e 2006”, diz Gurgel. Em 2002, Renan declarou lucros de 85% com os bois; em 2006, 80%. Era, presume-se, o rei do gado.
A PGR descobriu inconsistências semelhantes na evolução do patrimônio declarado oficialmente por Renan. A se acreditar nas declarações de Imposto de Renda do senador, diz a PGR, Renan viveria em regime espartano para os padrões de um senador. Mal teria dinheiro para “sua subsistência e de sua família”, diz a PGR. Em 2002, por exemplo, a família de Renan teria apenas R$ 2,3 mil mensais para viver. Em 2004, um pouco mais: R$ 8,5 mil mensais.
Tunga no Senado
Renan não usou apenas bois para tentar justificar de onde tirava dinheiro para pagar a pensão da filha. Usou também uma empresa que pertence ao primo – e que recebia do gabinete de Renan por “serviços”. Trata-se da Costa Dourada, uma locadora de carros de Alagoas que está em nome de Tito Uchôa – este não apenas primo, mas também laranja de Renan em rádios e TVs. Renan, ainda para justificar como pagara a pensão da filha, disse ter recebido R$ 687 mil da empresa, por meio de supostos empréstimos.
A PGR descobriu, porém, que os empréstimos não foram declarados à Receita e que o dinheiro supostamente proveniente deles “não transitou pelas contas apresentadas”. No papel, Renan recebia mais dinheiro da Costa Dourada do que o lucro que a empresa tinha. Em 2005, por exemplo, Renan recebeu R$ 99,3 mil da Costa Dourada – mesmo ano em que a empresa declarou lucro de R$ 71,4 mil. E quanto aos supostos empréstimos da Costa Dourada a Renan, contraídos em 2005? Não foram pagos pelo senador. “Passados mais de três anos desde o início dos empréstimos, não houve registros de pagamentos ou amortizações parciais dos recursos”, diz Gurgel.
A PGR descobriu muito mais, após quebrar os sigilos bancários dos envolvidos: havia saques, em espécie, das contas da Costa Dourada, enquanto a empresa supostamente prestava serviços ao gabinete do senador. O dinheiro saída da conta do Senado, ia para a conta da empresa do laranja de Renan, era sacado em espécie – e sumia. As gambiarras entre Renan e a empresa do primo-laranja levaram a PGR a descobrir outro crime cometido pelo senador: peculato, ou desvio de dinheiro público.“No curso deste inquérito, também ficou comprovado que, no período de janeiro a julho de 2005, Renan Calheiros desviou, em proveito próprio e alheio, recursos públicos do Senado Federal da chamada verba indenizatória, destinada ao pagamento de despesas relacionadas ao exercício do mandato parlamentar”, diz Gurgel na denúncia.
Era um esquema prosaico. O gabinete de Renan desviava recursos da verba indenizatória e apresentava ao Senado notas fiscais da Costa Dourada. No total, R$ 44,8 mil. Ao analisar as contas bancárias da Costa Dourada e de Renan, porém, a PGR nada encontrou. “Não há registro de pagamento e recebimento dos valores expressos nas referidas notas fiscais, o que demonstra que a prestação de serviços não ocorreu (…) servindo apenas para desviar os recursos da verba indenizatória paga pelo Senado Federal”, diz Gurgel. E onde foi parar o dinheiro do Senado? A PGR não conseguiu descobrir ainda. Por quê? Porque o Senado recusou-se a fornecer os documentos que comprovariam o destino dos recursos. Para a PGR, “o denunciado (Renan) praticou o delito previsto no artigo 312 (peculato), do Código Penal”.
O Senado não se recusou apenas a encaminhar ao Supremo as provas sobre o destino da verba indenizatória de Renan. Sequer encaminhou a íntegra da papelada fornecida por Renan ao Conselho de Ética para justificar o patrimônio, conforme pedira a PGR. Diante da postura do Senado, Gurgel pede na denúncia que o Supremo ordene à Casa que envie a documentação necessária ao avanço das investigações.
Desde que as primeiras acusações sobre seu patrimônio vieram a público, Renan mantém sua inocência. Mesmo com o acúmulo de evidências contrárias à versão dele, Renan insiste que o dinheiro para pagar a pensão de sua filha não viera da Mendes Júnior – e, sim, dos tais rendimentos que ele teria obtido com a venda de gado. Entre 2003 e 2006, esses investimentos teriam lhe rendido R$ 1,9 milhão. Na semana passada, após se descobrir que Gurgel apresentara a denúncia à qual agora ÉPOCA tem acesso, Renan afirmou em nota: “Ela (a denúncia) padece de suspeição e possui natureza nitidamente política. A denúncia foi protocolada exatamente na sexta-feira anterior à eleição para a presidência do Senado Federal. Trata-se de atitude incompatível com o habitual cuidado do Ministério Público no exercício de suas nobres funções”. Renan disse ainda que foi ele quem solicitou as investigações ao Ministério Público e à Receita Federal, e que forneceu os documentos (“todos verdadeiros”), além de sigilos bancário, fiscal e telefônico. “O senador Renan Calheiros lamenta a injustificável demora e agora a acusação, já julgada pelo Senado Federal, também será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, num ambiente de imparcialidade”, diz a nota.
Assim que obteve cópia da denúncia da PGR, na quinta-feira, ÉPOCA telefonou para Renan, mas o senador não atendeu à reportagem. Na caixa postal de seu telefone celular, foi deixada uma solicitação de entrevista para que o senador pudesse comentar a denúncia do procurador Roberto Gurgel. Cinco minutos após o contato feito por ÉPOCA, uma mulher ligou, a partir do telefone celular do senador Renan Calheiros, e identificou-se como Dilene, secretária do senador. Mais uma vez, ÉPOCA solicitou uma entrevista com o senador. Até o fechamento da reportagem, o senador Renan Calheiros e sua assessoria de imprensa não responderam aos pedidos de entrevista.
Revista Época
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