16/03/2013

O pulmão do papa


CRISTIANE SEGATTO  Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é cristianes@edglobo. (Foto: ÉPOCA)Depois de muita especulação sobre a saúde do Papa Francisco, o Vaticano confirmou que ele vive sem parte de um dos pulmões. Ela precisou ser extraída há cerca de 50 anos por causa de uma grave doença respiratória. Segundo o porta-voz, o pontífice de 76 anos tem boa saúde.
O episódio da grave doença na juventude foi descrito pela jornalista Francesca Ambrogetti no livro El jesuíta. "Jorge Mario Bergoglio teve três dias terríveis, ficou entre a vida e a morte quando tinha 21 anos. Tinha muita febre, ficava abraçado à sua mãe e dizia: 'O que está acontecendo comigo?' Os médicos estavam desconcertados e não sabiam o que responder."

No terceiro capítulo do livro, a jornalista explica: "O diagnóstico indicou uma pneumonia grave e ele tinha três cistos no pulmão. A doença foi controlada e depois de um tempo, Bergoglio foi submetido a uma cirurgia para remover a parte superior do pulmão direito.”

Esse fato não deve limitar a atuação do Papa. Se a cirurgia, feita há décadas, não o impediu de viver com boa qualidade de vida, é improvável que o pulmão se torne um problema agora – apesar da idade avançada do pontífice.
Nesses casos, o organismo costuma de adaptar à nova condição. Segundo os médicos, é possível viver bem com apenas 50% da capacidade pulmonar. Nem sempre com o mesmo vigor físico de uma pessoa que tem os dois pulmões, mas tudo depende da condição do órgão que restou.
Muita gente vive somente com um dos pulmões. A causa da retirada costuma ser câncer, acidentes, infecções, pneumonia ou tuberculose. Bergoglio não foi vítima de tuberculose, mas muitos foram. A tuberculose foi para o início do século XX o que a aids foi para o final.
Quando o argentino nasceu, a doença já havia levado milhões de anônimos e de famosos, entre eles o escritor austríaco Franz Kafka. O brasileiro Manuel Bandeira sofria da doença e soube registrar brilhantemente o que era ter um pulmão ruim. O poema Pneumotórax foi escrito em 1930, seis anos antes do nascimento do futuro Papa Francisco:
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .
— Respire.

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Oitenta e três anos depois, vacinas protegem contra as formas mais graves de pneumonia. Outras imunizam contra a gripe. Elas se tornaram um importantíssimo recurso de saúde pública, principalmente nos cuidados com a população idosa. Graças a elas, um Papa de 76 anos poderá correr o planeta, apesar de não ter os pulmões intactos.   
Por que não aconteceu o mesmo com a tuberculose? Se existem antibióticos capazes de curá-la, por que o mundo não conseguiu acabar com essa doença quase 100 anos depois da morte dos poetas românticos, modernistas e das gerações que vieram depois?
Uma das razões é absurda, mas verdadeira: a tuberculose perdeu o “charme” quando deixou de ser associada à criatividade e ao gênio dos artistas. Ela passou a ser associada, erroneamente, aos mais pobres. Ninguém mais fala sobre tuberculose, mas deveríamos.
Em primeiro lugar, essa é uma das mais graves ameaças atuais. Uma praga que está se tornando cada vez mais resistente aos antibióticos e fazendo vítimas em todas as classes sociais. Qualquer um pode pegar a doença. No ônibus, no metrô, no avião.
Durante as últimas décadas, a indústria farmacêutica deixou de investir em novos antibióticos por razões de mercado. Hoje vemos que a tuberculose não foi enterrada com os últimos românticos. É uma pandemia dos nossos tempos. Mata 4,5 mil pessoas por dia. A cada ano, são 1,7 milhão de mortes.
O mundo lida com uma ameaça complexa: a tuberculose multirresistente (MDR). Ela ocorre quando a pessoa abandona o tratamento e o bacilo se torna resistente aos antibióticos. Há algo ainda pior: a tuberculose extremamente resistente (XDR). Nesse caso, o bacilo resiste à maioria das drogas. Começam a aparecer casos de XDR em todos os países. Se esses casos continuarem aumentando, teremos uma situação gravíssima.
O Brasil precisa melhorar muito no combate à doença. A cada ano, 70 mil pessoas contraem tuberculose no país. As mortes chegam a 4,3 mil a cada ano. Além disso, estima-se que 45 milhões de pessoas carreguem o bacilo de Koch, a bactéria que provoca a maioria dos casos de tuberculose.
A doença ataca principalmente os pulmões, mas pode ocorrer em outras partes do corpo, como ossos, rins e meninges – as membranas que envolvem o cérebro. Os principais sintomas são tosse por mais de três semanas, com ou sem catarro, acompanhada ou não por febre no fim do dia. Mais detalhes, você encontra nesta outra coluna.
A tuberculose precisa voltar a ser lembrada. É importante que todos saibam que existe tratamento de graça e que ele não pode ser interrompido antes da cura.
Quando tiver um pretexto, fale sobre ela. Nem que seja um pretexto torto, como esse que arranjei aqui. OK, o Papa não teve tuberculose. Teve outra doença pulmonar. Mas o caso dele e de seus contemporâneos sugere uma reflexão sobre os rumos que a saúde pública tomou no último século.
Se a consequência extrema de todas as doenças é a mesma (a morte), por que algumas merecem atenção e investimento e outras não? Reflita, questione e me perdoe pelo mau jeito.
E você? O que acha? A saúde do Papa Francisco permitirá que ele cumpra sua missão? Conhece alguém que vive com doença pulmonar? Por que a tuberculose foi esquecida? Conte pra gente. Queremos ouvir sua opinião.
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)
Revista Época

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