09/04/2013

O que fazer com cães e gatos que dizimam espécies nativas em reservas naturais?


BOM CAÇADOR Flagrante de um gato no ato de atacar uma ave. Estima-se que um felino desses mate  80  animais por ano (Foto: Claudius Thiriet/Gamma-Rapho/Getty Images)Diante de um cãozinho simpático ou um gato dengoso, quem ama os animais em geral só tem bons sentimentos. É difícil imaginar que esses bichinhos, especialmente se fazem parte de nosso convívio, representam algum perigo ambiental. Se entrarem indevidamente em áreas naturais, porém, tanto cães quanto gatos se transformam em perigosos predadores da vida selvagem. É o que ocorre hoje nas unidades de conservação em várias partes do mundo, principalmente no Brasil. Dentro de parques nacionais ou de reservas biológicas, bichos que contam com nossa simpatia exterminam populações inteiras de espécies nativas de aves, lagartos ou pequenos mamíferos. Predadores trazidos por mãos humanas são a segunda maior causa de extinção de espécies nativas no mundo. Perdem apenas para a supressão dos hábitats.
O predador (Foto: reprodução Revista Época)
Um estudo recente realizado pelo Instituto Smithsonian e pelo Departamento de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidosmostra o tamanho da ameaça. Segundo o levantamento, os gatos matam de 1,4 bilhão a 3,7 bilhões de pássaros e entre 6,9 bilhões e 20,7 bilhões de mamíferos todo ano. Embora os gatos de rua representem a maior ameaça, gatos domésticos também saem para passear e caçar. “Esperamos que essa mortalidade incentive as pessoas a manter seus gatos dentro de casa e sirva de alerta para as autoridades”, diz Pete Marra, do Smithsonian.

O impacto dos gatos e cães faz parte dos danos provocados por espécies estranhas aos ambientes naturais. Elas chegam a áreas onde não enfrentam grandes predadores e caçam outros animais que não estão acostumados a lidar com elas. No linguajar dos biólogos, essas espécies não nativas são chamadas de exóticas. No caso de cães e gatos, os mais problemáticos são os que deixaram a vida doméstica e se reintegraram ao ambiente selvagem. São chamados de cães ou gatos ferais.

“O problema das espécies invasoras é seriíssimo. Há casos de animais competindo ou caçando espécies nativas em quase todas as unidades de preservação do Brasil”, diz Pedro Menezes, diretor de criação e manejo de unidades de conservação do Instituto Chico Mendes (ICMBio), órgão federal responsável pelas áreas protegidas do país. Os cães de quem tem sítio perto de um parque entram na área da reserva, mas em geral só caçam nas bordas. Os cães ferais vivem dentro da unidade e caçam mesmo no miolo da reserva, que deveria ser um refúgio para as espécies nativas. Segundo Menezes, no Parque Nacional de Brasília, matilhas de cães ferais caçam veados e catetos (porco-do-mato). No Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro, gatos ferais atacam a fauna nativa. “Um estudo no Reino Unido mostrou que cada gato mata cerca de 80 indivíduos de outras espécies por ano, como aves, lagartos ou esquilos. Imagine o estrago feito por uma população de gatos numa área com espécies que só ocorrem ali”, diz Menezes.

CONSERVAÇÃO Iguana numa ilha de Galápagos. Para proteger a espécie, foram criados projetos de erradicação de cães, gatos e outros animais   (Foto: Stuart Westmorland/Getty Images)
Outras espécies exóticas também ameaçam os ambientes naturais. Os búfalos, trazidos da Ásia para a Amazônia, sustentam milhares de famílias na região. Algumas manadas interferem na reprodução de peixes, aves e tartarugas na Reserva Biológica do Vale do Guaporé, em Rondônia. O ICMBio estuda como abater os animais “de forma sustentável”. Um projeto da Embrapa prevê o abate de 540 búfalos por ano. O javali, espécie de origem europeia, se espalhou pelo Brasil e readquiriu hábitos selvagens. Hoje, expulsa os porcos-do-mato nativos do Brasil. É também agressivo com o ser humano. Quando chegou ao arquipélago de Fernando de Noronha, o navegador Américo Vespúcio relatou ter visto suas ilhas cobertas por ninhos de aves marinhas. Ratos europeus trazidos por acidente pelos navios dos exploradores adaptaram-se bem às ilhas. Tão bem que exterminaram as espécies locais de ratos e passaram a devorar animais nativos. Aos ratos se somaram gatos, cães e outros bichos domésticos, além de tejos, lagartos que comem ovos e pequenos animais. Os ninhos nativos sumiram de Fernando de Noronha.
a mensagem 775 ambiente (Foto: reprodução Revista Época)
Em outros países, é comum controlar espécies invasoras. Um cervo da Malásia foi levado para a África do Sul e começou a competir com as espécies nativas. Em alguns parques nacionais, o cervo malaio passou a ser caçado a tiros, de helicóptero. Na Ilha da Ascensão, possessão britânica no Atlântico, os gatos matavam centenas de milhares de aves marinhas por ano. Os pássaros só prosperavam em pequenas ilhotas vizinhas, sem os felinos. Os biólogos então passaram a reduzir a população de gatos. Eliminaram cerca de 2 mil felinos, usando iscas envenenadas. As aves voltaram então a se propagar na Ilha da Ascensão. Em Galápagos, onde a maior parte das ilhas é parte de um parque nacional, há projetos para erradicar cães, gatos, porcos, cabras e outras espécies exóticas.

Na Nova Zelândia, o governo executa um projeto para salvar espécies nativas, principalmente o quivi, ave símbolo do país. Entre os predadores estão cães e gatos sem dono ou selvagens. Usando iscas envenenadas, as autoridades locais conseguiram criar pequenas ilhas livres de gatos e cães. Enquanto isso, os biólogos reduzem a população de gatos e cães soltos na ilha principal do país criando áreas cercadas para reintroduzir a fauna nativa. Na Austrália, o controle de raposas e gatos, que já extinguiram várias espécies nativas, é feito com o lançamento de iscas envenenadas de helicóptero em áreas críticas de conservação. Nas ilhas australianas de Maquarie e Marion, o extermínio dos gatos no ano 2000 permitiu que a população de aves marinhas se recuperasse.


Biólogos são, antes de mais nada, gente que ama os animais. Por isso, antes de apelar para os recursos extremos, tentaram medidas menos violentas. Nos Estados Unidos, há várias décadas se fazem pesquisas com vacinas anticoncepcionais para controlar gatos selvagens. Elas não são eficazes para controlar grandes populações em áreas naturais extensas, porque precisam ser reaplicadas várias vezes. Se ministradas por alimentos espalhados pela área, não há garantia de que todas as fêmeas ingerirão o suficiente para suspender a reprodução.

PROTEÇÃO Quivi, a ave símbolo da Nova Zelândia. Lá, as autoridades locais criaram ilhas livres de cães e gatos para preservá-lo (Foto: John Stone/AP)
Para Menezes, do ICMBio, o problema no Brasil é cultural. “Ainda não conseguimos nem discutir isso de forma equilibrada”, afirma. “Quando é capim ou um molusco invasor, lidamos com a questão com seus problemas técnicos e econômicos. Se a espécie exótica for um mamífero que envolve sentimentos, aí entramos numa discussão emocional.” Recentemente, o Ibama publicou uma norma disciplinando o manejo de javalis. Foi um marco. As autoridades responsáveis pela administração de áreas de preservação e pela defesa de espécies ameaçadas ainda têm dificuldade para conseguir lidar com búfalos, cães ou gatos em áreas de preservação. No Brasil, a legislação proíbe a caça, sem distinção entre espécie nativa ou exótica. Nem prevê a caça dentro de um plano de manejo para conservar áreas naturais.
Na Austrália, iscas envenenadas são lançadas por helicóptero para erradicar gatos 
Segundo a Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA, na sigla em inglês), não é preciso matar. “Foram os humanos que levaram indevidamente esses animais para perto das áreas naturais onde eles não deveriam estar”, diz Rosângela Ribeiro, gerente de programas veterinários da WSPA no Brasil. “Agora, cabe aos humanos resolver isso de forma humanitária.” Para ela, há alternativas menos violentas, como campanhas de conscientização dos donos de animais domésticos. “Eles devem aprender a manter os bichos dentro de casa, com coleiras com sinos (no caso de gatos).” Para controlar cães e gatos ferais, ela recomenda que os bichos sejam recolhidos e encaminhados à adoção. “O custo dessa operação é mais alto, mas não é algo impossível. É, sobretudo, uma questão ética”, diz. Para o biólogo Fábio Olmos, o discurso das entidades protetoras dos animais não ajuda a resolver a questão na prática. “Isso é medo de enfrentar o problema de frente”, afirma ele. “Cuidar do bem-estar animal é uma causa nobre. Mas não à custa da extinção de outras espécies. Por receio de lidar com esse tabu, estamos causando um dano maior à vida.”
Revista Época

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