Escrever uma carta pode ser a solução mais fácil contra o ruborescer provocado pela timidez durante a revelação de segredos íntimos
As palavras, transcritas no papel, evitam o constrangimento face a face e podem gravar um significado mais profundo do que aquelas soltas no ar e perdidas na memória durante uma conversa - trazendo também as marcas de uma personalidade por vezes obrigada à reclusão.
Eugênia, narradora protagonista do conto "Confissões de uma Viúva Moça", de Machado de Assis, utiliza-se do gênero epistolar para contar à amiga Carlota o que a tortura há dois anos - buscando regeneração com a distância da corte. Enquanto viveu com o marido, a personagem se deixou envolver sentimentalmente por um sedutor, Emílio. A relação não chegou a se concretizar fisicamente, mas, durante o jogo da sedução provocado por ele, Eugênia, mulher casada que deve fidelidade também de pensamentos naquela sociedade do século XIX, amou-o e trocou afetos escondidos. O amor constantemente citado pela personagem foge, porém, das marcas de um amor romântico.
As duas faces
O processo de conquista, marcado pelo desejo da aventura apaixonada, evoca nela a sensação de pecado cometido. O medo repele ao mesmo tempo em que atrai.
Apenas com a recusa do casamento por parte de Emílio após a viuvez, ela consegue enxergar o abismo mortal no qual estava prestes a mergulhar definitivamente. Pois, apesar de a morte do marido permitir a reconstituição familiar, o "crime" do passado não fora apagado até então. A solução, que parece um purgatório à maneira católica, ainda gera dúvidas na personagem sobre a isenção do pecado outrora imaginado e, evidentemente, desejado.
As sete cartas, recebidas a cada domingo por Carlota - e enviadas 24 horas antes, portanto, no sábado - nos remetem ao descanso sabático de Gênesis. Durante a reconstrução do próprio direito à salvação, com o descanso dos justos, a carta é uma forma de redimir o "crime cometido". Independentemente do orgulho ferido e da vaidade, a narradora usa as cartas como forma de confessionário, desvendando segredos e pecados para servir de exemplo as outras amigas que venham, assim, vivenciar semelhante situação. Após o dever cumprido, ela também terá direito ao "sono dos justos".
A temática
Publicado no desenvolvimento da maturidade literária do Autor, em 1865, no Jornal das Famílias, o conto gerou polêmica já que revela um amor proibido, fora do matrimônio, mesmo que não consumado.
À época eram comuns os casamentos arranjados, assim como a maior força da doutrina cristã, que corroboravam a submissão da mulher virtuosa diante do marido.
A protagonista desde o início do conto apresenta certa oposição às "leis" matrimoniais, impondo ao marido a ida ao Teatro Lírico. (Texto I) O escritor apresenta uma personagem que se referencia tanto na Bíblia como em mitos gregos para mostrar o dilema do profano da paixão com a religiosidade do matrimônio. Amorim Neto (2006) destaca a narradora como uma leitora incompetente de romances e competente na leitura de épicos, tragédias e da Bíblia."Entretanto, se há algo que ela conseguiu apreender dos romances, esse algo foi a forma. (...) neste conto, a citação ao romance, está em sua própria estruturação" (Amorim Neto, 2006, p. 1).
A mitologia
A relação de Eugênia com os mitos aparentemente é mais intensa durante a vida de casada, com a religião vencendo apenas após a morte do marido e com a recusa por parte do próprio homem que a seduzia. No conto, há dois momentos de referência mais clara à mitologia grega. No primeiro capítulo, quando expõe as motivações para encaminhar as cartas: (Texto II)
FIQUE POR DENTRO
As reações das personagens e o modelo social
No terceiro capítulo do conto, a narradora afirma, após ver o admirador misterioso, que o sono daquela noite não tinha sido "o sono dos justos", para revelar inquietação. No sentido bíblico, o sono ou descanso dos justos apresenta variados sentidos, referindo-se, também, à salvação garantida após a morte material. Desse modo, podemos inferir a relação com a religiosidade, uma vez que ela encontra-se no desejo do pecado. Sidney Chalhoub, no texto "Diálogos políticos em Machado de Assis" do livro A História Contada(1998), aponta sobre uma série de perfis de personagens dos romances machadianos que se utilizam da inteligência para "burlar" o sistema patriarcal, como forma de fazer a própria vontade. Normalmente, esses personagens têm personalidades marcantes apesar de estarem em situação social de submissão. Podemos, assim, perceber que há uma retomada evidente às estruturas da sociedade da época.
Trechos
TEXTO I
A teimosia de Eugênia, não aceitando a recusa do marido para ir ao Teatro Lírico, lembra a situação de Eva, que, mesmo ciente de que comer do fruto de determinada árvore era ilícito, insistiu em cometer o erro. Ambas são mulheres que praticam ações não condizentes com uma postura submissa, de subserviência ao marido, burlando sua condição historicamente retratada de seres servis. A personagem atribui sua insistência a um "espírito mau" (ASSIS, 2005, p. 75) que a incitou a enfrentar a recusa do marido, e mais tarde a levara a ver pela primeira vez aquele que desagregaria totalmente o seu vínculo conjugal. Enquanto isso, Eva é incentivada pela serpente, que afirma não haver perigo algum em provar do fruto proibido. Cada uma, a seu modo, cede a impulsos instintivos, irracionais, que as conduzirão a situações irreversíveis. (Zafalon, 2010, p.85)
TEXTO II
Logo no verão seguinte vieste com teu marido para cá, disposta a não voltar para a corte sem levar o segredo que eu teimava em não revelar. A palavra não fez mais do que a carta. Fui discreta como um túmulo, indecifrável como a Esfinge. Depuseste as armas e partiste.
Desde então não me trataste senão por tua Esfinge.
Era Esfinge, era. E se, como Édipo, tivesses respondido ao meu enigma a palavra "homem", descobririas o meu segredo, e desfarias o meu encanto. (Assis, p.281)
GABRIELA RAMOSCOLABORADORA
Diário do Nordeste
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