Médicos de todo o mundo se uniram para atacar o câncer em mais uma frente. O trabalho desta vez não é nos hospitais ou nos laboratórios. Mais de cem especialistas entraram no debate sobre os altos preços dos medicamentos. Em artigo no periódico Blood, da Sociedade Americana de Hematologia, os profissionais questionam o valor dos tratamentos, que podem ultrapassar US$ 100 mil por ano: “Qual é o preço justo, moralmente justificável, para uma droga contra o câncer?” Para eles, é hora de indústrias farmacêuticas, agências reguladoras, governos, médicos e pacientes discutirem a questão.
“Estamos começando a perder a noção em termos de valores. Precisamos cada vez mais ver o lado dos pacientes. No México, de 30% a 40% das pessoas com leucemia mieloide crônica (LMC) conseguem pagar pelos remédios. A maioria está morrendo”, diz Nelson Hamerschlak, hematologista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e um dos signatários do documento.
Feito por especialistas na área, o artigo trata principalmente dos custos do tratamento da LMC, que representa um marco importante na luta contra o câncer. O mesilato de imatinibe, comprimido que aumentou significativamente expectativas de vida, custa US$ 26 mil por ano na média mundial. Nos Estados Unidos, o valor anual do tratamento passou de US$ 30 mil em 2001 para US$ 92 mil no ano passado. “É um problema tanto em países desenvolvidos quanto em subdesenvolvidos. Nos Estados Unidos, em geral os pacientes têm que arcar com 20% do valor dos remédios”, diz Hamerschlak.
Ao contrário dos Estados Unidos, onde a patente do imatinibe (com o nome comercial de Glivec) pertence à farmacêutica Novartis até 2015, no Brasil já há a produção de um genérico. O primeiro lote foi liberado em dezembro de 2012, e deve proporcionar economias de mais de R$ 300 milhões nos próximos quatro anos ao Ministério da Saúde, que distribui o remédio pelo SUS a 95% dos pacientes com leucemia mieloide crônica do país.
A droga é produzida pelos laboratórios públicos Farmanguinhos e Vital Brazil, em parceria com cinco laboratórios privados, Cristália, EMS, Laborvida, Globe Química e Alfa Rio. O preço dos comprimidos é 15% mais baixo que o Glivec, passando de R$ 82,4 para R$ 70 (dose de 400 mg). O custo mensal do tratamento está, portanto, em R$ 2.100 ou US$ 1.050, metade da média mundial.
Para Hamerschlak, entretanto, a redução deveria ser ainda maior. “É um absurdo o preço do genérico ser tão alto. Quando se faz um medicamento, o laboratório original tem o custo de desenvolvimento dele e de outros que foram criados e não serviram para nada. Quem faz o genérico não tem custo nenhum com isso, já sabe o que funciona.”
O Instituto Vital Brazil diz que contratos feitos com o governo para a entrega de genéricos preveem preço até 20% mais baixo que o do mercado. “Essa é a redução base para medicamentos de alta complexidade. O laboratório assume ainda o compromisso de baixar o valor todo o ano. Nosso contrato prevê desconto real de 5% (sem inflação) anualmente. É uma política de excelentes resultados”, diz Bernardo Horta, vice-presidente do instituto. Segundo ele, o custo do imatinibe não é menor porque o insumo farmacêutico ativo (IFA) é importado da Índia e da China. A expectativa é nacionalizar totalmente a produção ainda neste ano.
Na revista Blood, os especialistas dizem que as indústrias têm o direito de manter o lucro – fundamentais para novas pesquisas –, mas não podem usar métodos antiéticos. Eles até fazem comparação com o aumento do preço do pão durante uma epidemia de fome.
No caso do Glivec, pesquisadores acadêmicos pressionaram as empresas desde a fase de desenvolvimento do medicamento. Na década de 1990, o oncologista Brian Druker, da Universidade de Saúde e Ciência de Oregon, nos Estados Unidos, teve de insistir por mais de três anos para que a Novartis transformasse sua descoberta em um produto. Com pacientes sem nenhuma opção de tratamento, ele estava quase tentando desenvolver a droga por conta própria. A indústria relutava em gastar milhões para desenvolver uma molécula contra a LMC. Alguns milhares de pacientes eram diagnosticados por ano com a doença e, como a sobrevida era baixa, o número de beneficiários (e compradores) do novo medicamento não seria tão alto. E este é apenas um exemplo do que ocorre na luta por melhores e mais acessíveis tratamentos.
O Glivec tem especificidades refinadas. Conhecendo o defeito genético que causa a leucemia mieloide crônica, Druker e outros colegas testaram uma série de inibidores para desligar o gene produtor da proteína BCR-ABL, que desorganiza a produção de glóbulos brancos (células de defesa) no sangue. O resultado do imatinibe foi surpreendente. Com ele, a doença desacelera e o equilíbrio entre células normais e malignas é restaurado. “Essa droga equipara o tratamento do câncer ao de uma doença crônica como diabetes e hipertensão arterial. O paciente leva uma vida normal, desde que tome o remédio todos os dias. Enquanto ele estiver agindo, podemos falar que o indivíduo está curado. É a cura funcional”, diz Israel Bendit, professor livre-docente de hematologia na Universidade de São Paulo e também um dos signatários do texto na Blood. Altamente específica e não tóxica, a droga abriu uma nova porta na batalha contra o câncer. Atualmente, ela também é usada para tratamento de outras doenças, como um tumor no tubo digestivo conhecido como Gist.
Com tantos benefícios, a droga se tornou a terapia mais indicada, desbancando medicamentos como o interferon e transplantes de medula óssea. Quando o imatinibe começou a ser difundido, médicos consideraram o preço alto, mas que valia ser pago. Segundo pesquisadores, dois anos seriam suficientes para a indústria farmacêutica recuperar os custos de desenvolvimento. Além disso, com a ampliação do número de usuários (nos Estados Unidos, por exemplo, a estimativa de portadores da doença na próxima década será de 250 mil), era esperado que o preço caísse ao longo do tempo. Ocorreu o contrário em muitos países. E passados alguns anos, a ideia foi revista. “Pacientes gratos podem se tornar ‘vítimas financeiras’ do tratamento de sucesso, tendo que pagar um preço alto para permanecerem vivos”, afirma o artigo Blood. O Glivec é o comprimido mais vendido da Novartis. Em 2012, gerou receita de US$ 4,7 bilhões.
A empresa diz, por meio de nota, que o preço do medicamento reflete custos de pesquisa e os grandes benefícios para os pacientes. “Nossa inovação na área da LMC mudou o curso da doença. Antes das terapias inovadoras, como Glivec (imatinibe) e Tasigna (nilotinibe), a sobrevida de cinco anos na LMC era de apenas 30% . Atualmente, nove entre dez pacientes com LMC apresentam uma expectativa de vida normal, e levam vidas produtivas”, escreve Patrick Eckert, gerente geral Novartis Oncologia. Segundo ele, muitos outros pacientes se beneficiaram dos investimentos contínuos da empresa em pesquisa, “que resultaram na identificação de outras cinco doenças raras para as quais Glivec poderia apresentar benefício”.
A Novartis afirma ainda que opera oferecendo preços e programas de acesso que consideram as especificidades de sistemas de saúde. Globalmente, diz a indústria, um terço de todo Glivec produzido é distribuído de graça aos portadores da doença, alcançando até o momento 50 mil pessoas em mais de 80 países de baixa renda. “No Brasil, entre 2010 e 2012, o governo atuou com o modelo de compra centralizada para distribuição do medicamento aos pacientes em todo o país. Com a expiração da patente de Glivec, em abril de 2012, a Novartis Brasil vem apoiando o Ministério da Saúde para oferecer uma alternativa efetiva para a continuidade do tratamento de pacientes de imatinibe, que utilizam o medicamento para tratar LMC e Gist, com a contínua preocupação de que tais pacientes continuem a receber uma terapia da mais alta qualidade”, afirma o gerente geral da Novartis Oncologia.
Países de todo mundo têm desafios para melhorar a oferta de medicamentos de primeira linha, seja com a pressão sobre as indústrias para reduzir a margem de lucro, aumentando o poder dos governos de negociação de prazos de patentes e preços, ou estimulando a produção de genéricos baratos. O principal alerta dos pesquisadores sobre leucemia é que a falta de controle dos valores e a noção de que “não se pode pôr um preço na vida” estão saindo caro demais para os pacientes.
Revista Época
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