21/06/2013

A revolução da bondade

Por Pedro Miguel Lamet
Quando, em pleno conclave, durante um debate da Uno, pediram-me um título sobre a mudança de pontificado, ofereci este: “Dois papas e um destino: a credibilidade da Igreja”. Também me lembro de ter desejado, em uma carta, “um homem com o gosto do evangelho, do desprendimento, da pobreza e abertura; que não conceba a Igreja como castelo, mas como praça do povo. Que não se feche no Vaticano, mas que vá à rua para encontrar Deus, não como apólice, mas como uma luz que dá sentido e se divide. Sobretudo, que traga otimismo, que não se sinta o dono de uma propriedade, mas o pastor amigo, o pai próximo, o irmão em cujo ombro este nosso mundo possa descansar. Em uma palavra, que possa ser chamado ‘Papa dos pobres’”.

Aquilo foi lançado como uma utopia quase irrealizável. Aos cem dias de pontificado, é possível constatar que alguns desses desejos se cristalizaram na figura do papa Francisco. Já em sua primeira aparição, seus sinais foram de simplicidade, oração, sobriedade e proximidade, com uma identidade quase explosiva, no meio caminho entre Assis e Loyola, a pobreza revolucionária de Francisco e a astúcia prática de Inácio.

Diz-se que até o momento seu pontificado pode ser reduzido a uma série de gestos; mas que ocultam uma atitude. Para além da mudança de residência, sapatos, papamóvel, paramentos litúrgicos e protocolo, há no papa Francisco uma virada copernicana, uma descentralização evidente ao reposicionar a Igreja na periferia. Insiste em chamar a si próprio como “bispo de Roma”, sublinhando o “primus inter pares” sobre o mítico pontífice máximo; vai à rua e à paróquia muito mais com atitudes de pastor do que de definidor dogmático; preside a missa diária em Santa Marta, opta por uma vida comunitária para evitar o esplêndido isolamento e, sobretudo, dá seus primeiros passos para se levar a sério o quase desprezado Vaticano II, em sua concepção da colegialidade. O mais significativo deles é, sem dúvida, a eleição do Conselho de Cardeais para o espinhoso tema da corrupção, e que parece que poderia se institucionalizar numa forma permanente de assessoramento papal ou em um governo colegiado. Ainda são esperadas nomeações chaves. Contudo, segue relativamente depressa para os paquidérmicos movimentos históricos da Igreja.

Nada que se saiba sobre a temida bicefalia papal. Bento XVI cumpriu sua palavra de “papa nascosto” e Francisco publicará com ele uma encíclica “a quatro mãos”. Em seu pensamento, o Papa argentino está se manifestando como um grande comunicador, que coloca o acento no positivo ao invés da condenação sistemática dos males do mundo. Sem dúvida, tem açoitado a guerra, o desprezo à vida, o esvaziamento da sociedade de consumo, o egoísmo imperante, mas sem vacilar contra o atual império das finanças, o flagelo do desemprego e a exploração dos pobres, sua principal preocupação. Faz isto de forma quase diária, em intervenções com sabor paroquial e ancoradas na linguagem, pedindo aos padres “cheiro de ovelha” ou definindo o Deus da New Age como uma espécie de “deus spray”.

Diferente de muitos bispos espanhóis, que não saem dos temas do aborto, da homossexualidade ou do ensino religioso, sem ainda ter publicado um documento sobre a ética econômica da crise, Francisco parte da autocrítica da própria Igreja: corrupção, ambição, carreirismo. Há alguns meses, seria incompreensível ouvir de um papa palavras como as dirigidas aos religiosos da América Latina. “É possível que recebam uma carta da Congregação da Fé, mas não se preocupem e continuem adiante, denunciando os abusos. Abram portas, façam algo onde a vida clama. Prefiro uma Igreja que erre por fazer algo, do que uma que adoeça por ficar fechada”.

Conservador ou progressista? Incatalogável, pois, embora continue sendo o Bergoglio tradicional na doutrina de sempre, rompe o modelo por sua bondosa autenticidade evangélica. E apesar de não esperarem mudanças no celibato, ordenação da mulher, nem na questão da homossexualidade, sua virada de foco cativou até mesmo teólogos progressistas como Boff, Küng, Sobrino e Gustavo Gutiérrez. É verdade que seu frequente recurso ao diabo ou a simplificação do panteísmo, nos modelos atuais de contemplação, incomodam estes e as comunidades de base. Também que já é conhecida uma oposição silenciosa em ambientes próximos aos novos movimentos ou sites integristas e aristocráticos, tão pendentes da rubrica ou do modelo de Igreja wojtyliano. Em outubro, Francisco canonizará João Paulo II, mas, ao mesmo tempo, desbloqueou o processo de “são” Romero da América. O povo deseja e as pesquisas confirmam isto.

Os corvos vaticanos acabarão comendo-lhe, como alguns se aventuram? Não acredito. A pomba franciscana voa com asas de discernimento jesuítico. E contamos apenas com cem dias desta “revolução da bondade”.
El alegre cansancio, 20-06-2013.
Dom Total

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