Memórias de um filho dedicadas àqueles que desfrutam a alegria e o privilégio de terem um pai, ou o guardam na memória do coração.
Por Marco Lacerda*
Quando finalmente retornei ao Brasil, depois de oito anos vivendo em San Francisco, meu pai estava às vésperas da morte. Com os pulmões corroídos pelos cigarros, encontrei apenas o que restou dele: um fantasma de si mesmo. Nenhum vestígio do craque do futebol, nenhum sinal do homem bacana, sempre trajando ternos de linho bem cortados, que fazia revirar os olhos das garotas de todos os quarteirões por onde passava.
Batia o último ponto no relógio da vida o comerciante de perfumes baratos da avenida Santos Dumont, homem de poucos recursos, olhos de um dourado estranho, às vezes cruéis, e uns rubores na face que muitas vezes me fizeram duvidar de sua sanidade mental.
Será que ele sabe o quanto me magoou?, pergunto-me diante da sua cama no hospital.
Não importa mais. Como nunca o perdoei, tampouco o esqueci. Atravessar a vida sem tê-lo como amigo e parceiro foi como viver numa casa sem teto. E aqui está ele diante de mim, morrendo como sempre viveu, numa solidão povoada de estranhos conhecidos, com o sentido da realidade transtornado, recordando histórias do passado como se elas acontecessem naquele momento, conversando com amigos de sua juventude distante, já mortos, como se estivessem reunidos ao redor do seu leito.
Pouco depois de chegar ao hospital ele entrou num coma do qual nunca mais sairia. Me assustava a sensação de deixá-lo sair deste mundo sem pelo menos um gesto que representasse um adeus. Ao lado da cama, sozinho com ele na UTI, apertei sua mão contra a minha e assim permaneci por algum tempo, tentando sobrepor-me às barreiras que o tempo erguera entre nós, até reencontrar, em pensamento, o homem terno e protetor que, mesmo nos dias das gripes mais fortes, bastava entrar no meu quarto para a febre baixar.
Aproximei a boca do ouvido dele e disse baixinho o que nunca ousara dizer antes: “Eu te amo, meu pai”. E repeti tantas vezes quantas quis meu coração. Naquele momento, senti sua mão apertar a minha com o pouquinho de força que ainda lhe restava. Movido por um amor fugidio, seu polegar deslocou-se, trêmulo, e acariciou de leve a palma da minha mão. Como se tivesse uma criança nos braços, senti que finalmente o tinha prisioneiro para sempre no lugar que é dele no meu coração.
A vida às vezes tem de esperar a morte para amarrar suas pontas. Pouco mais tarde, naquele mesmo dia, ele morreu. O funeral acabou sendo, não a descida do ataúde à sepultura, mas aquele pequeno interlúdio de felicidade, numa UTI, em que nossos corações se reencontraram. Nunca mais ele voltou para casa. Até porque nunca foi dele a casa. E se a ela retornou durante tantos anos foi porque não tinha para onde ir ou, talvez, por ter sido o lugar onde mijou, como os cachorros sem dono, para marcar seu território, o único abrigo que reconhecia num mundo ao qual nunca pertenceu.
Morreu o contador de histórias que despertou em mim o desejo de um dia contar histórias também. Fechou os olhos para sempre o homem em quem o amor dava medo, mas que talvez tenha me amado mais e melhor que ninguém. Na verdade acho que ele morreu muito antes. Ele e a vida vinham juntos de muito longe. Parecia um homem feito para outros tempos, outros mundos. Estava, enfim, protegido de todos os medos pela imunidade da morte.
Em homenagem a todos os pais, a canção preferida do meu pai:
Redação DomTotal
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