17/09/2013

O clube de mil tons

Cantor mineiro Milton Nascimento celebra 50 anos de carreira, com disco ao vivo marcado por reencontros
Quando em 1967, aos 25 anos, um jovem carioca, mas que tinha a alma encravada nas montanhas das Minas Gerais, deixou o público do Festival Internacional da Canção (FIC) de boca aberta ao cantar a música "Travessia", de sua autoria e Fernando Brant, o Brasil se preparava para ir às ruas, como fez, no ano seguinte, na famosa passeata dos 100 mil, contra o regime militar.

Em registro ao vivo, o cantor Milton Nascimento reviveu parcerias do tempo do Clube da Esquina

E Milton Nascimento, hoje, com 71 anos, esteve na Candelária, Rio de Janeiro, engrossando as vozes que destoavam contra o cenário político da época. Hoje, ao celebrar os 50 anos de carreira, o cenário é de efervescência, com o povo ocupando ruas e mostrando como na quarta música do CD "Uma travessia - Milton Nascimento: 50 anos de carreira", ao vivo, "Clube da esquina nº 2", que os "sonhos não envelhecem... Em meio a tantos gases lacrimogêneos/ficam calmos".

O CD duplo, que leva a assinatura da Universal Music, constitui um apanhado de parte da obra de Milton Nascimento, que celebra, ainda, 45 anos da clássica "Travessia", última faixa do CD 2; e quatro décadas do antológico "Clube da Esquina", gravado com Lô Borges.

Entre batidas de um som mais urbano, como o novo arranjo feito para "Lennon e McCartney", composição de Lô e Márcio Borges e Fernando Brant, ou um som que remete ao movimento "paz e amor", como em "Nuvem Cigana", de Lô e Ronaldo Bastos, assim é possível fazer um passeio pela música de Milton Nascimento.

Fases

Artista versátil, sua música passou por vários momentos da história do País, realidade comprovada no desenrolar dos dois discos.

Assim, é possível entrar em contato com uma música mais social de Milton Nascimento, como em "Canção do sal" , "Morro Velho" e "Maria Maria". São várias faces e fases de um dos mais representativos nomes da música brasileira, cuja carreira é pautada no compromisso social que a arte tem, não apenas com a sociedade, mas com a história. Ambas retiram dos fatos cotidianos a matéria-prima para a sua sobrevivência. A música de Milton Nascimento parece fruto dessa simplicidade, do ordinário que vira extraordinário, pelas mãos do poeta.

Sem seguir receita de sucesso, imprevisível e com compromisso apenas com o fazer artístico, assim é a música de Milton, cujo esmero com o trabalho pode ser materializado nas obras, na escolha dos músicos e na composição das letras e arranjos.

Para uns, "Uma travessia - Milton Nascimento: 50 anos de carreira" é um disco de reminiscências, de memórias, e para outros, didático, novo para as gerações mais novas, que desvendam os vários "miltons". Daí contar com um público fiel, capaz de acompanhar "mesmo que o tempo e a distância digam não", como os versos de "Canção da América", música composta em Los Angeles.

São vários tons e facetas de um mesmo músico. Uma voz singular, assim como é também particular a sua capacidade de usar a arte tanto como superação de sua história de vida, quanto para levar mensagens seja ao coração das pessoas, como em "Sofro calado". Ou quando os temas enveredam para as questões sociais, como faz na canção "Morro Velho".

Na música, fala das diferenças sociais expressas na vida de dois garotos. Um, filho do empregado da fazenda, e, o outro, filho do senhor da fazenda, que viaja para a cidade grande para estudar e volta "doutor", virando "sinhozinho". O mesmo tom é usado em "Canção do sal", ao retratar a vida difícil nas salinas. Fala do desejo que o pai tem do filho estudar "para vida de gente levar".

Amigos

O disco prima pela qualidade sonora, uma das principais características da obra de Milton Nascimento. Além de marcar um reencontro de gerações e de sons. Para aqueles que já acompanham a travessia do cantor e compositor pela música brasileira há mais tempo, funciona como um álbum de fotografia. Algumas, em preto e branco, outras, coloridas, amareladas. Não importa.

Para os jovens, que estão conhecendo "O trem azul", música de Lô Borges e Ronaldo Bastos, por uma publicidade de telefonia celular, em alguns momentos, o disco parece inédito.

Numa demonstração de que o amor à música também não envelhece, assim como as amizades com os amigos e compositores Lô Borges e Wagner Tiso, também a voz de Milton Nascimento desafia meio século.

As músicas são intercaladas por algumas falas do cantor. Em seguida, convida o amigo Wagner Tiso e canta "Vera Cruz", música composta por Márcio Borges. Depois, entoa "Canção do sal" e convida o amigo de várias gerações, Lô Borges que canta "Clube da esquina nº2", emendando com "Nuvem Cigana".

Após cantar "Anima", parceria de Milton Nascimento com Zé Renato, o cantor das Gerais fala da música que fez para a mãe "Lília", justificando a falta de letra. Diz que nada poderia definir o seu amor.

Mais uma face do cantor: a gratidão, sentimento estendido aos amigos, sobretudo os convidados especiais do disco. Em "Amor de índio", com Beto Guedes e Ronaldo Bastos, em tempos difíceis para expressar emoções, a letra desafia e diz que "sim, todo amor é sagrado". O segundo disco começa com "Raça" e "Maria, Maria", canções que Milton compôs com Fernando Brant e que incorporam a luta por igualdade de gênero e de cor. E é fechado com "Canção da América" cantada pelo público. Como diz antes de cantar "Nos bailes da vida", ele e o amigo Wagner Tiso aprenderam a tocar, cantar e compor, na noite. Modesto, Milton Nascimento mostra no disco que tem fôlego para mais travessias.

DVD/ CD duploUma Travessia - 50 Anos de Carreira ao vivoMilton Nascimento
Universal Music
2013, 23 faixas
R$ 42 (cada)


IRACEMA SALESREPÓRTER 
Diário do Nordeste

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