19/09/2013

O sertão em toda parte

Aldemir Martins é um dos cearenses que compõem a exposição "Trajetórias", no Espaço Cultural Unifor
Estrigas disse: "se quiséssemos definir a santíssima trindade das artes plásticas no Ceará, não teríamos dúvidas: Raimundo Cela, Antonio Bandeira e Aldemir Martins". De fato, o talento do trio é indiscutível, mas, em especial, a força criativa de Aldemir é virtude de poucos.

As obras "Cangaceiro" e "Bumba Meu Boi", em exposição no Espaço Cultural Unifor. Abaixo, um simpático Aldemir Martins se deixa fotografar em seu ateliê, no bairro Sumarezinho, em São Paulo fotos: kid junior

O artista é um dos destaques da mostra "Trajetórias - A arte brasileira na Coleção Fundação Edson Queiroz", em cartaz no Espaço Cultural Unifor. Três obras do artista integram a exposição que conta com expoentes da arte moderna no País.

Antes de morrer, em 2006, Aldemir Martins realizou de mais de 90 individuais, no Brasil e no exterior. E quem diria que tudo começaria naquele ano de 1922. Em São Paulo, a eclosão da Arte Moderna, com a famosa Semana de 22. Em Ingazeiras, distrito de Aurora, no Sul do Ceará, nascia Aldemir.

Seu pai, Mighel Martins, era funcionário público em Guaiuba (distante 38 km de Fortaleza), onde viveu parte de seus tempos de menino. Logo, no entanto, mudaria-se para Fortaleza, destino da maioria dos filhos do sertão.

Na capital, estudou no Colégio Militar, onde alcançaria uma curiosa harmonia entre o ensino formal, sob as vistas dos oficiais, e as artes gráficas.

Tornou-se monitor de desenho na escola e, entre os anos de 1941 a 1945, um homem de farda. Servindo ao Exército, conquista seu primeiro prêmio ao vencer o concurso promovido pela Oficina de Material Bélico da 10ª Região Militar. Por causa da companhia de telas e pincéis, conferem a Martins a patente de "cabo pintor".

Cena local

Estando em Fortaleza, Aldemir passa a frequentar e estimular a cena artística local, ainda em formação. Participa, aliás, de um dos grupos mais importantes da história da arte no Ceará: a Sociedade Cearense de Artistas Plásticos, a Scap. Ali interage com quem, mais tarde, testemunharia carinhosamente seu talento: uma das extremidades da santa trindade, Antonio Bandeira (1922-1967), e um seu admirador (também digno de admiração), Nilo Firmeza, o Estrigas. Em sua arte, destacava-se o traço forte, geométrico e minucioso. Repleto de camadas e detalhes. Além disso, ao contrário de muitos pintores, não tinha medo das cores e, muito menos, dos temas. Certa vez disse: "Por que minha preocupação com o futebol? Simples: não me envergonho de gostar de feijoada, de carne seca - nem de bola".

Em 1942, realiza sua primeira exposição, no II Salão de Pintura do Ceará. A partir dessa década se estabelece, de fato, como ilustrador, trabalhando para periódicos, como O Unitário, O Correio do Ceará e O Estado.

"Aldemir não é um, dois ou três capítulos na história da nossa arte. Ele é a soma dos muitos capítulos que compõem uma obra clássica que fica, marca, e é de todos os tempos", condecorou, certa vez, Nilo Firmeza, em artigo escrito para o Diário do Nordeste, quando de seu falecimento, em 2006.

Sampa

Relembrando sua trajetória, Estrigas explica desse modo a ida de Aldemir para São Paulo: "Grande demais para ser outra coisa, Aldemir tinha que ser mesmo artista plástico. Isto se percebia desde seus começos em Fortaleza e o empurrou para um meio maior, capaz de dar a resposta que ele precisava para bem ocupar espaços mais amplos que os de Fortaleza. São Paulo era um bom santo e ali Aldemir instalou seu altar".

Embora nunca tenha deixado de referenciar suas pautas, o Ceará ficara pequeno para o artista. Em 1945, muda-se para o Rio com 12 telas a óleo e 15 desenhos embaixo do braço. Após um ano na Cidade Maravilhosa (que, para o recém-chegado cearense não pareceu tão maravilhosa assim), optou por São Paulo, a convite do escritor e crítico Paulo Emílio Salles Gomes. Ali fixaria residência.

Na primeira bienal de artes plásticas da cidade, em 1951, deixa sua marca: uma mescla de técnica universal e tema com referências à terra natal. Vence o único prêmio de desenho com a peça "Cangaceiro". Naquele ano, aliás, após uma viagem ao Ceará, Martins decide retornar a São Paulo num caminhão pau de arara. Com essa experiência, inicia uma série de desenhos de temática nordestina: paus de arara, rendeiras e o cangaço. Cinco anos depois, consagraria-se internacionalmente, conquistando o Prêmio Internacional de Desenho da Bienal de Veneza, honraria mais importante de sua carreira.

Por outro lado, foi também considerado um dos pioneiros no ato de comercializar sua arte para outros produtos, como cenários para espetáculos de teatro, rótulos de cachaça, capas de livros ou até ilustrações para aberturas de novelas globais, a exemplo de "Gabriela", da obra de Jorge Amado. Além disso, era o verdadeiro acolhedor da massa artística nordestina que ia a São Paulo tentar a vida, como Os Doces Bárbaros e o Pessoal do Ceará.

Manteve, em boa parte de sua vida, seu trabalho em um mesmo endereço: o ateliê no bairro Sumarezinho. Ali, uma bandeira do Corinthians, uma tela de Rivelino. Sobre a mesa de trabalho, uma frase: "O sertão está em toda parte". Segundo Estrigas, Aldemir resguardava ali ainda uma seleção especial de seu acervo destinada à herança familiar. Nice Firmeza, sua esposa, as teria visto e se impressionado muito com a qualidade das obras.

Ainda hoje, as gravuras de cangaceiros, rendeiras, peixes, gatos e moças, além de cenas e personagens sertanejos, seguem representando a verve artística do cearense. Sobre a permanência de seu legado, o amigo Nilo não poderia ter definido melhor: "Os grandes artistas continuam vivos, mesmo depois de mortos. Aldemir é desses".

Mais informações

Exposição "Trajetórias - A arte brasileira na Coleção Fundação Edson Queiroz". Até 8 de dezembro, no Espaço Cultural Unifor (Av. Washington Soares, 1321). Visitação: de segunda a sexta-feira, das 8h às 20h; sábados e domingos, das 10h às 18h. Gratuito. Estacionamento no local.
Contato: (85) 3477.3319

MAYARA DE ARAÚJOREPÓRTER 
Diário do Nordeste

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