O 'sentir para saber" na infância é um processo que na vida adulta corrompemos diariamente até restar apenas o 'saber sem sentir'.
(Foto: Ilustração Max Velati) |
Por Max Velati*
Já comentei aqui nestas conspirações semanais que o sentimento de espanto-reverência (que os antigos filósofos gregos chamaram de thauma) é a nossa proteção contra a Máquina. Também já expliquei que chamo de Máquina as contradições do progresso, as engrenagens da vida moderna desenhadas para moer e triturar tudo o que nos torna humanos.
Thauma é uma combinação rica do "espanto" diante da grandeza da vida e de "reverência" diante da sua profundidade. Apesar do espanto ser mais fácil de explicar, pois ocorre naturalmente, a atitude de reverência exige alguns esclarecimentos.
A Máquina nos ensina desde cedo que toda reverência deve ser uma postura formal de aceitação da nossa pequenez diante de um poder superior e tal atitude deve nascer do temor. Para a Máquina, a reverência é sempre fruto do medo, da hesitação e assim não percebemos que na sua origem latina (re-vereor) o termo também significava "cuidado especial" ou uma postura de respeito que nasce também "da estima e do amor".
A melhor maneira de entender o tipo de reverência que nasce do amor é observar uma criança enfrentando de boa vontade um novo desafio.
Diante de qualquer tarefa que ela tenha aceitado de bom grado, a criança não presta homenagens, não oferece sacrifícios, não faz promessas, não se declara indigna, não se curva e não se ajoelha. Ela simplesmente ama a tarefa e se apresenta vazia, deixando que o conteúdo da experiência inunde o seu ser até transbordar. E faz isso sem interferências inúteis. Se forem devidamente convidadas todas as crianças cantam, pintam, dançam, recitam ou se dedicam a qualquer outra forma de expressão sem a menor preocupação com a qualidade estética ou com o resultado formal do que estão realizando. A experiência de cantar, pintar, dançar ou recitar é agradável por si só, pois é uma exploração divertida de novos limites, uma fonte de fácil acesso de onde se pode obter um novo estoque de sensações, de amor, experiências e sobretudo, conhecimento.
O "sentir para saber" na infância é um processo que na vida adulta corrompemos diariamente até restar apenas o "saber sem sentir".
O que muda então quando crescemos?
Diariamente a Máquina distribui tarefas e somos educados a pensar em nosso desempenho apenas em termos de resultados concretos. Diariamente a Máquina determina limites para o nosso conhecimento e somos educados a respeitar estes limites e a temer o que pode estar além. Diariamente a Máquina nos garante que conseguir a aprovação pública naquilo que fazemos é mais importante do que o risco e o prazer de observar de perto o Mistério e o Insondável da vida.
A vida adulta não nos ensina a lidar de maneira saudável com os limites da aventura do conhecimento. Temos uma noção equivocada de que o limite de tudo o que sabemos é uma fronteira bem demarcada que mantém o Mistério da vida fora do nosso alcance. Tudo além desta fronteira deve inspirar apenas temor. Com a thauma, o limite do meu conhecimento adquire uma flexibilidade que as crianças aceitam e compreendem. Toda fronteira é uma condição dinâmica, temporária e a exploração de novos territórios do saber e do sentir é um modo rico de reverenciar a vida.
O "espanto" desta experiência nasce da percepção de que encontrei algo novo, além do meu limite. E a "reverência" deve ser então uma atitude natural diante dessa nova e inesperada fonte de sensações e aprendizagem. A reverência não é a mesura, a postura curvada, o gesto teatral de medo, gratidão ou humildade. A reverência é a disposição sincera de querer aprender, de olhar a vida bem de perto, de explorar a sua grandeza e a sua profundidade.
As crianças não agradecem de mãos postas quando têm uma oportunidade de cantar, pintar, dançar ou recitar. Elas cantam aos berros, pintam com os dez dedos, dançam sacudindo todo o corpo e recitam poemas decorados ou inventados com a mesma dedicação. Elas não utilizam símbolos de reverência porque estão ocupadas demais dedicando um nível de amor e atenção ao que estão fazendo como se apenas aquela tarefa existisse no mundo naquele instante.
Amar a tarefa que temos pela frente como a nossa única obra no tempo e no espaço é reverenciar a vida com um tipo de atenção que está muito além de qualquer gesto de gratidão ou atitude de humildade.
Na thauma - como os gregos perceberam - ocorre um esvaziamento natural do que somos naquele instante, abrindo assim espaço para receber o que está além da fronteira e então, subitamente nos transformamos; somos agora um pouco maiores e um pouco melhores porque atentamente movemos com o nosso esforço as nossas fronteiras. É isso o que a Máquina mais teme: com a thauma a vida fica maior.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.
Nenhum comentário :
Postar um comentário