Por Jason Horowitz e Jim Yardley
Com menos de um ano de papado, Francisco levantou expectativas entre os 1 bilhão de católicos do mundo de que uma mudança está a caminho. Ele já transformou o tom do papado, confessando-se um pecador, declarando "Quem sou eu para julgar?" quando perguntado sobre os gays e ajoelhando-se para lavar os pés de presidiários, incluindo muçulmanos.
Menos aparente, embora igualmente importante para o futuro da igreja, é como Francisco enfrentou uma burocracia do Vaticano tão praguejada de intrigas e inércia que contribuiu, segundo vários autoridades da igreja, para a renúncia histórica de seu antecessor, Bento XVI, em fevereiro passado.
O reinado de Francisco poderá em última instância não afetar a doutrina de vários séculos da igreja, mas já está remodelando a maneira como a igreja é dirigida e quem a dirige. Francisco está constantemente substituindo tradicionalistas por moderados enquanto a igreja se prepara para um debate sobre o papel de bispos distantes na tomada de decisões no Vaticano e uma ampla discussão sobre a família que poderá afetar questões delicadas como a homossexualidade e o divórcio.
Na Basílica de São Pedro na véspera de Ano Novo, Francisco, vestido em trajes dourados, sugeriu as grandes mudanças que já iniciou. "O que aconteceu este ano?", perguntou. "O que está acontecendo e o que vai acontecer?"
Para alguns dos cardeais purpurados que ocupavam as fileiras de poltronas douradas no serviço de Ano Novo, a resposta estava se tornando clara. O cardeal Raymond L. Burke, um dos americanos mais graduados no Vaticano, encontrou sua influência diluída. Outro conservador, o cardeal Mauro Piacenza, foi rebaixado. Entre os bispos, o arcebispo Guido Pozzo foi posto de lado.
Até certo ponto, Francisco, 77, está simplesmente trazendo sua própria equipe e dotando-a para realizar sua missão declarada de criar uma igreja mais inclusiva e relevante, que seja mais sensível às necessidades das paróquias locais e dos pobres. Mas ele também está rompendo blocos rivais de italianos com influência entrincheirada na Cúria Romana, a burocracia que governa a igreja. Francisco está aumentando a transparência financeira no obscuro Banco do Vaticano e invertendo a escada de cargos que muitos prelados passaram a vida galgando.
No domingo (12), Francisco deixou sua primeira marca no exclusivo Colégio de Cardeais que elegerá seu sucessor, nomeando prelados que em muitos casos vêm de países em desenvolvimento e do hemisfério sul. Ele instruiu os novos cardeais a não considerarem o cargo uma promoção ou desperdiçar dinheiro com festas comemorativas.
"Foi um ano importante", disse o secretário de Estado, Pietro Parolin, a segunda autoridade do Vaticano e um dos únicos quatro que Francisco sagrará cardeal em fevereiro. Perguntado em uma entrevista na véspera de Ano Novo sobre as mudanças de pessoal, ele respondeu que é natural que o papa argentino prefira ter "certas pessoas que são capazes de promover sua política".
Entrevistas com cardeais, bispos, padres, autoridades do Vaticano, políticos italianos, diplomatas e analistas indicam que o clima dentro do Vaticano vai da adulação à incerteza e à ansiedade profunda, e mesmo um toque de paranoia. Várias pessoas dizem temer que Francisco vá de departamento em departamento procurando cabeças para cortar. Outras sussurram sobre seis misteriosos espiões jesuítas que agem como os olhos e ouvidos do papa nos terrenos do Vaticano. Principalmente, autoridades antes poderosas se sentem fora do círculo.
"É estranho", disse uma importante autoridade vaticana que, como muitas outras, insistiu no anonimato por temer uma retaliação de Francisco. "Muitos estão dizendo: para que estamos fazendo isso?" Ele disse que algumas autoridades deixaram de comparecer às reuniões. "São como adolescentes frustrados fechando a porta e colocando seus fones de ouvido."
Francisco continua difícil de definir, um doutrinário conservador cujo estilo humilde e gestos simbólicos entusiasmaram muitos liberais. No Natal, os destituídos encheram uma antiga igreja em Roma para um almoço patrocinado por uma organização laica católica. O fundador do grupo, Andrea Riccardi, que já foi uma importante ligação com a igreja quando serviu como ministro do governo italiano, manifestou esperanças de mudança, mas também preocupação sobre as autoridades do Vaticano ignorarem a agenda do papa.
"Eu ouço pessoas falarem sobre isso nos corredores da igreja", disse Riccardi. "A verdadeira resistência é continuar as coisas como sempre."
Batalha não é nova
Foi uma crítica explícita à atmosfera envenenada que perturbou o papado de Bento XVI, e pela qual o ex-secretário de Estado, cardeal Tarcisio Bertone, muitas vezes foi acusado. E foi um lembrete de que Francisco, embora um novo papa, não é novato quanto às maquinações da Cúria, tendo lidado na Argentina com uma poderosa facção conservadora.
"Ele não é um ingênuo saindo para o mundo", disse Elisabetta Piqué, uma jornalista argentina que conhece Francisco há mais de duas décadas e cujo livro recente, "Francisco, Vida e Revolução", documentou seus antigos choques com Roma. "Ele teve quase uma guerra com essa parte da Cúria Romana."
Hoje, Francisco fala com desprezo dos "bispos de aeroporto" que estão mais interessados em suas carreiras do que em seus rebanhos, e adverte que os padres podem se tornar "pequenos monstros" se não forem treinados adequadamente como seminaristas.
Ele está desmantelando o círculo de poder de Bertone, que liderou um grupo de conservadores concentrados na cidade de Gênova, na Itália. Em setembro, Francisco destituiu Piacenza, um aliado de Bertone, de seu cargo na direção da poderosa Congregação para o Clero.
Para alguns foi um indício de que o novo papa poderá atuar com uma dose de vingança. Várias autoridades vaticanas disseram que a maior transgressão de Piacenza foi minar seu antecessor, um prelado brasileiro próximo de Francisco que apareceu com ele no balcão de São Pedro depois de sua eleição.
Francisco também removeu uma autoridade graduada do governo da Cidade do Vaticano, mas lhe arranjou um local de pouso suave. Outros foram menos felizes.
Como padre, Guido Pozzo liderou uma comissão do Vaticano encarregada de superar o cisma entre a igreja e os tradicionalistas críticos do Segundo Concílio Vaticano. Em novembro de 2012, Bertone o elevou ao cargo de arcebispo e Bento o indicou para dirigir o órgão de caridade da igreja. Francisco, que está muito menos interessado que Bento em apelar para os conservadores cismáticos, desde então enviou Pozzo de volta a seu antigo cargo.
Outro é Raymond Burke. Em 2008, Bento instalou seu colega tradicionalista como presidente da Assinatura Apostólica, o tribunal supremo do Vaticano, e no ano seguinte o nomeou para a Congregação para os Bispos. O cargo deu a Burke uma tremenda influência na escolha de novos bispos nos EUA.
Em dezembro, Francisco o substituiu por um cardeal mais moderado. "Ele está procurando lugares para colocar sua gente", disse uma autoridade que critica o papa.
A missa de Ano Novo em São Pedro terminou com uma procissão de padres escoltando Francisco para fora da basílica, seguida pelos milhares de fiéis. Na igreja quase vazia, os cardeais e bispos levantaram-se de seus assentos, cumprimentaram dignitários e caminharam ao redor da tumba de São Pedro.
Piacenza apanhou seu guarda-chuva em um banco. Pozzo caminhou para a porta. Perguntado sobre as mudanças que ocorrem na Cúria, ele respondeu: "Foi um ano surpreendente!"
Não muito longe dali, Burke abençoava alguns fiéis e não quis fazer comentários sem a permissão de seus "superiores".
Semanas antes, Burke parecia destinado a ser a voz mais proeminente da resistência ao reinado de Francisco, ao dizer a uma rede de televisão católica que não tinha "exatamente certeza por que" o papa "pensa que estamos falando demais sobre aborto" e outras questões da guerra cultural. Ao se tratar de mudanças na Cúria, ele lamentou "uma espécie de imprevisibilidade sobre a vida em Roma hoje em dia".
Mais ou menos na mesma hora, Francisco dava uma entrevista ao jornal italiano "La Stampa". O papa falou novamente sobre "ternura" e a abertura da igreja. Mas também acrescentou: "A prudência é uma virtude do governo. Assim como a coragem".
Foi um ponto revelador. Em 15 de dezembro, Burke retornou a sua paróquia da infância em Stratford, Wisconsin, nos EUA, para celebrar uma missa especial. Usando a mitra alta e a tradicional batina cor-de-rosa da temporada de Natal, ele falou sobre suas raízes rurais mas decepcionou alguns de seus paroquianos ao não mencionar o papa Francisco ou os acontecimentos no Vaticano.
"Eu esperava que ele falasse", disse Marge Pospyhalla, que participou da missa. "Mas não, não tivemos isso." Seu silêncio disse o bastante. Um dia depois da missa, Francisco removeu Burke da Congregação para os Bispos.
The New York Times, 15-01-2014.
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