23/05/2014

A luta de um homem pelo direito de ser esquecido

Cidadão comum enfrenta o gigante Google em guerra por direito à privacidade.
O tipo de memória protética criada pela Internet ameaça a privacidade de muita gente no mundo.
Por Marco Lacerda*
Num momento em que os americanos vivem obcecados com a perda da memória, os europeus dedicam-se a cultivar o esquecimento. Esquecer deixou de ser sinal de senilidade e tornou-se tão importante quanto recordar.
Ainda sob impacto das ações da espionagem americanas contra seus governantes e suas empresas, os europeus desafiam o que é aceito como regra do jogo nos EUA: a violação do direito à privacidade, esquema do qual foi vítima até a presidente Dilma Roussef, entre outros governantes. Trata-se de uma clara reprimenda a esse tipo de procedimento paranoico, típico dos norte-americanos.
Um dos sinais do repúdio é o processo aberto por Mário Costeja González, frequentador assíduo do site de busca e especialista em comunicação não-verbal. González indignou-se com um link indexado pelo Google, que conduz a um artigo publicado em 1998 pelo jornal La Vanguardia, de Barcelona.
O artigo revela minúcias do processo aberto contra ele pelo governo local, forçando-o a assumir responsabilidade por dívidas não pagas. “A exposição pública de certas informações, mesmo que irrelevantes à primeira vista, afetam sua dignidade e sua vida privada”, desabafou em entrevista ao jornal The Financial Times.
Pedida a expulsão do Google
Um editorial do New York Times, divulgado recentemente, adverte que impedir o Google de atuar na Europa, como é reivindicado por González, deixaria os europeus em desvantagem no campo da informação, além transformar-se num obstáculo para jornalistas e dissidentes que lutam para serem ouvidos no mundo.
A advogada Laura Handman acrescenta que "o 'direito de ser esquecido' é uma tentativa de restaurar o conceito legal da ‘obscuridade prática’, que no passado obrigava as pessoas a fuçar os arquivos das bibliotecas públicas sempre que necessitavam investigar o passado de alguém”.
Com o surgimento das ferramentas de busca na Internet, esse tipo de procedimento tornou-se obsoleto. Noutras palavras, o conceito de ‘obscuridade prática’ teria sido abolido e enterrado. “A preocupação nos meios jurídicos é que informações do passado relevantes no presente – sejam elas referentes a criminosos, políticos corruptos ou caloteiros espanhóis – poderiam ficar fora do alcance dos interessados em promover a justiça”, diz Laura Handman.
A advogada se diz acabrunhada por defender o Google. “Esquecer é um talento que temos que reaprender, pois é um bálsamo, uma bênção, uma válvula de escape muitas vezes eficaz. Mas, lobotomizar a Internet não é a solução”.
É sempre bom lembrar que "o tipo de memória protética criada pela Internet", continua Handman, "é, ao mesmo tempo, um fardo e uma ferramenta de utilidade. Isso não significa, porém, que de repente as pessoas tenham o direito de apagar suas reputações ou distorcer seus antecedentes na infosfera”.
David contra Golias
Meg Ambrose, professora da Universidade de Georgetown, se solidariza com o ceticismo europeu: “Muita gente ao redor do planeta está cansada de pisar em cascas de ovos e de estar constantemente se autocensurando para preservar seu direito à privacidade. Na verdade, estão clamando por respeito às informações de cunho pessoal e como elas são usadas”.
Jaron Lenier, autor de ‘A quem pertence o futuro?’, conhecido como o pai da realidade virtual, concorda com veemência e compara a atitude corajosa do espanhol Mário Costeja González com a do jovem chinês que enfrentou a caravana de tanques da repressão na Praça da Paz Celestial, em Pequim, na tentativa de evitar um massacre maior naquele nefasto 4 de junho de 1989.
Lenier repudia comportamento infantil do Google e sua sede de gratificação imediata, ao vasculhar a intimidade dos outros ao mesmo tempo em que defende a sua com unhas e dentes. “Liberdade significa respeito aos pontos vulneráveis dos demais. Infelizmente, o que impera no Silicon Valley (Vale do Silício) é uma mistura de supremacia nerd e hiperlibertarismo”, conclui o pai do realismo virtual.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do DomTotal.

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