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Por Cardeal Orani João Tempesta*
No próximo dia 6 de agosto iremos comemorar 36 anos da Páscoa do Papa Paulo VI, que no dia 19 de outubro será beatificado pelo Papa Francisco, na Praça de São Pedro, em Roma. Ele permaneceu à frente da Igreja de 1963 a 1978, de modo que teve, enquanto sucessor de Pedro, um bom tempo – quinze anos – para exercer seu ministério como Bispo de Roma e, portanto, Sumo Pontífice da Igreja Católica.
Coube a ele – diplomata e pastor, que após servir na Secretaria de Estado da Santa Sé de 1922 a 1954, e na Arquidiocese de Milão, de 1954 a 1963 – a árdua missão de conduzir os trabalhos do Concílio Ecumênico Vaticano II (1963-1965), iniciados por seu imediato antecessor, São João XXIII. Esta missão, nobilíssima por sinal, rendeu ao Papa Montini grandes alegrias, mas também não poucos dissabores. Recorrências comuns de uma fase pós-conciliar na vida da Igreja.
Como quer que seja, pode-se dizer, sem sombra de dúvidas, que Paulo VI foi um grande Pontífice e, apesar de todos os sofrimentos que o cercaram, não se deixou abater, mas, ao contrário, refugiado na oração pessoal, especialmente pela recitação do Rosário de Nossa Senhora, e comunitária, a Liturgia das Horas e a Santa Missa, encontrou, até o fim de seus dias neste mundo, forças para guiar a Barca do Senhor, que é a Igreja.
Elevado à Cátedra de Pedro em 21 de junho de 1963, deu a conhecer ao mundo, em 6 de agosto de 1964, seu programa de Pontificado por meio da Encíclica Ecclesiam Suam [a Sua Igreja] ao escrever que “A Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio. (...) Em qualquer esforço que o homem faça para compreender a si mesmo e ao mundo, pode contar com a nossa simpatia; onde quer que as assembleias dos povos se reúnam para determinar os direitos e deveres do homem, sentimo-nos honrados, quando no-lo permitem, tomando lugar nelas” (n. 38 e 54).
O historiador da Igreja, Henrique Cristiano José de Matos, escreve que ao atender o desejo colegiado dos Padres Conciliares, reunidos em Roma, Paulo VI “o fez com a preocupação de não romper com a tradição eclesiástica. Interveio pessoalmente em todas as questões polêmicas. Nesse sentido, podemos citar a Nota Prévia (nov. de 1964, acrescentada à Constituição Lumen Fidei, que visava a reafirmar a doutrina do Concílio Vaticano I sobre o Papado; a Encíclica Mysterium Fidei (1965) sobre a Eucaristia, corrigindo os debates sobre a transubstanciação; a Encíclica Humanae Vitae, sobre a questão do controle de natalidades e do planejamento familiar [na verdade, “paternidade responsável”, dizemos com a Igreja] (1968); a intervenção sobre o celibato sacerdotal, cuja discussão fora subtraída ao Concílio (Sacerdotalis Caelibatus, 1967; Sínodo dos Bispos, 1971: Documento sobre o Ministério Sacerdotal); intervenção sobre o papel da mulher na Igreja (Comissão de Estudos para o Ano da Mulher), 1975” (Introdução à História da Igreja. Belo Horizonte: O Lutador, 1987, p. 168).
Paulo VI foi um Papa aberto às questões da Igreja de seu tempo, fiel às pegadas do Vaticano II. Implementou o diálogo com o mundo moderno, com outros cristãos (ecumenismo) e com outras religiões (diálogo interreligioso); defendeu a paz mundial; empreendeu viagens internacionais, sendo o primeiro Papa depois de Pedro a estar em Jerusalém, no ano de 1964; deu impulso à colegialidade dos Bispos instituindo o Sínodo deles em 1975; reformou parcialmente a eleição do Sumo Pontífice e a escolha dos Bispos; abriu ainda mais a Cúria Romana para Cardeais não italianos e criou a Comissão Teológica Internacional (CTI).
Com essas atuações, que poderiam assomar-se a muitas outras, Paulo VI, segundo o historiador citado acima, fez duas coisas ou agiu em duas frentes, para dentro e para fora da Igreja. Sim, “por um lado, realizou a ingente tarefa de renovar a Igreja na sua vida interna, dando-lhe instrumentos válidos para o trabalho de atualização, enriquecendo-a de orientações adequadas para a formação dos sacerdotes, dos religiosos e do laicato, adaptando a liturgia de acordo com os desejos do Concílio, criando uma viva consciência missionária, estimulando a formação de vários organismos que levam os membros da Igreja a uma participação maior na sua vida e na sua caminhada, não deixando nenhum setor sem sua presença, sua palavra, seu incentivo e seu admirável equilíbrio de moderador, fiel ao que é intangível sem deixar de ser fiel aos apelos dos tempos novos”.
“Por outro lado, soube o Papa Paulo VI abrir-se para o mundo inteiro, conseguindo que a Igreja fosse o que dela profetizou Isaías: ‘Um estandarte levantado no meio das Nações’ (Is 11,12). É difícil sintetizar aqui tudo o que ele fez na área do ecumenismo, em relação às Igrejas do Oriente e do Ocidente; com as culturas da Ásia e da África; suas viagens à Índia, à Austrália, às Filipinas, à América Latina, à ONU. De fato, esteve presente no mundo, levando a mensagem do Evangelho, a palavra da justiça, o apelo da paz. Paulo VI parece ter herdado de seu predecessor João XXIII a vontade de atravessar as fronteiras, de procurar o diálogo em vez de lançar anátemas” (idem, p. 168-169).
Apesar de tudo isso, como já acenamos, Paulo VI foi chamado de “o Papa do sofrimento”, dados os dissabores que enfrentou dentro e fora da Igreja na fase imediatamente seguinte ao Concílio. Se isso é real, podemos dizer, a justo título, que Montini foi também “o Papa da verdadeira alegria que vem do Senhor”.
Para evocar o lado sereno e feliz desse Pontífice, que em breve será beatificado, desejamos lembrar aqui um documento pouco conhecido, mas de grande profundidade espiritual, que foi assinado por ele em 9 de maio de 1975. Trata-se da Exortação Apostólica Gaudete in Domino, que, em português, significa Alegrai-vos no Senhor!, escrita por Paulo VI em preparação à solenidade de Pentecostes do Ano Jubilar de 1975.
Nessa Exortação, o Santo Padre começa dizendo, com fundamento em Filipenses 4,45 e no Salmo 145,18: “Alegrai-vos no Senhor, porque Ele está perto de todos os que O invocam com sinceridade” e a partir daí vai desenvolvendo a noção da alegria cristã, que é a alegria no Espírito Santo como um dom d’Ele mesmo para cada um de nós (cf. Gl 5,22), mas que é, não raras vezes, esquecido, como se ser cristão e ser santo fosse ter cara feia e triste. Aliás, duas constatações vêm ao caso a propósito: a primeira lembra aquele dito popular, às vezes também atribuído a algum santo: “Um santo triste é um triste santo”; a segunda é a fala do Papa Francisco, no dia 1º de junho de 2013, quando diz, recordando, inclusive, Paulo VI, que “muitas vezes os cristãos têm mais cara de que estão num cortejo fúnebre do que louvando a Deus”, mas isso está errado, pois “sem a alegria, o cristão não pode ser livre, mas, ao contrário, torna-se escravo da tristeza”.
É precisamente este o ponto em que os Papas Bergoglio e Montini se encontram, uma vez que, na conclusão da Gaudete in Domino se lê: “Irmãos e filhos caríssimos: não será normal que a alegria habite dentro de nós, quando os nossos corações contemplam e descobrem de novo, na fé, os seus motivos fundamentais? E estes motivos são simples, aliás: tanto amou Deus o mundo, que lhe deu o seu Filho único. Pelo seu Espírito, a sua presença não cessa de envolver-nos na sua ternura e de nos impregnar com a sua vida; e nós caminhamos para a transfiguração ditosa das nossas existências, seguindo rumo à ressurreição de Jesus. Sim, seria muito estranho que esta Boa-Nova que provoca os aleluias da Igreja não nos deixasse com o semblante de pessoas salvas!”
Isso posto, surge uma pergunta comum e interessante: mas, afinal, que tipo de alegria é a cristã? – Responde, então, Paulo VI, citando São Tomás de Aquino, que a expressão mais elevada da alegria ou da felicidade é aquela entendida no sentido estrito da palavra, “quando o homem, ao nível de suas faculdades superiores, encontra a sua satisfação na posse de um bem conhecido e amado. Assim, o homem experimenta a alegria quando se encontra em harmonia com a natureza, e, sobretudo, no encontro, na partilha, na comunhão com o outro. Com muito mais razão, pois, chegará ele a conhecer a alegria e a felicidade espiritual quando o seu espírito entra na posse de Deus, conhecido e amado como o bem supremo e imutável” (Summa Theologica, I-II, q.31,a 3).
No entanto, novamente, pode haver quem tente contradizer o Papa dizendo que, neste mundo finito e dilacerado por discórdias, é praticamente impossível encontrar a felicidade. Daí responder Paulo VI que a questão, de certo modo, parece contraditória porque está mal colocada. Com efeito, pensa-se que a felicidade ou a alegria está no ter... Ter carros bons, casas, dinheiro, artefatos técnicos, enfim coisas materiais, quando, na realidade, a verdadeira alegria vem de outra fonte, é espiritual, por isso nenhum bem material, por maior que seja, pode comprá-la ou conquistá-la.
É por essa razão que, mergulhado no materialismo, o ser humano dos séculos XX e XXI se sente impotente ante os males, especialmente os de ordem moral que os acomete, pois os recursos de natureza material de que dispõe são ineficientes para a batalha. Mais: se essa angústia é grande, há ainda outro agravante que o Papa, já em 1975, denunciou: são alguns meios de comunicação de massa que “acabrunham as consciências, sem lhes apresentar, normalmente, uma solução humana adequada”.
Contudo, apesar dos não poucos e nem pequenos desafios, Paulo VI nos convida a olharmos maravilhados, desde a nossa infância até a velhice, para tudo o que Deus fez e sentirmos a serena alegria que só Ele pode nos dar como um dom do Espírito Santo, conforme se lê em Gálatas 5,22. E acrescenta que “o homem só poderá experimentar a verdadeira alegria espiritual quando se afastar do pecado e viver na presença de Deus. A carne e o sangue são, sem dúvida, incapazes disso (cf. Mt 16,17). Mas a revelação pode abrir esta perspectiva e a graça pode operar esta conversão” no coração humano, às vezes petrificado pelo pecado, por meio do sacramento da Penitência.
Paulo VI recorda nessa exortação o Apóstolo das gentes: “Estou cheio de consolação, estou inundado de alegria no meio de todas as tribulações” (7,3-4). Elas mostram que, mesmo entre as intempéries da vida, o verdadeiro discípulo de Cristo jamais perde a esperança, pois está inundado da alegria do Espírito Santo.
Possa, portanto, a Virgem Maria, invocada em sua Ladainha como sendo a “Causa de nossa alegria”, interceder por nós para que nossa vida, inundada pela força do Espírito de Deus, seja fonte de verdadeira alegria e felicidade para nós e para todos os que nos cercam. Amém!
CNBB
Cardeal Orani João Tempesta é arcebispo do Rio de Janeiro
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