15/01/2015


Autor descobre filme que mostra comunidade dizimada no Holocausto


Americano escrevia romance sobre menina obcecada por um filme antigo.

Até que ele mesmo ficou envolvido com vídeo que achou na casa dos pais.



 Giovana SanchezDo G1, em São Paulo









Em seu mais recente livro, o norte-americano Glenn Kurtz escreve que a história é construída por fragmentos “preservados ao acaso, misteriosos, conectados”. E foi mesmo juntando pedaços de um quebra-cabeça que Kurtz compôs “Three minutes in Poland” (“Três minutos na Polônia”) – inédito em português e recém-lançado nos Estados Unidos. O livro conta como, ao pesquisar sobre seu novo romance, o músico e professor acabou, ele mesmo, se tornando o personagem que criou.


Foi assim: em 2008, Kurtz começou a escrever a história de uma mulher de Viena que achava um filme antigo em um mercado de pulgas da cidade. Ao assistir ao vídeo, ela ficava obcecada com as pessoas que apareciam nas imagens e passava a pesquisar sobre suas vidas, descobrindo ao fim que se tratavam de dois irmãos fugindo da perseguição na Europa nazista.


O autor americano Glenn Kurtz (Foto: Franziska Liepe/Divulgação)

O autor americano Glenn Kurtz (Foto: Franziska

Liepe/Divulgação)

“Foi durante esse processo que passei a pesquisar o que acontece com os filmes antigos quando eles começam a se deteriorar”, disse Kurtz em entrevista ao G1, por telefone. Ele lembrou que sua família tinha filmes guardados em um depósito. Viajou até a casa dos pais e vasculhou os armários do porão.


Lá, achou alguns filmes velhos. Entre eles, estava um gravado em 1938, quando seus avós fizeram uma viagem para a Europa, um ano antes de estourar a Segunda Guerra Mundial. Entre as imagens, estavam detalhes do cotidiano da comunidade judaica da cidadela de Nasielsk, na Polônia. Eram frames que mostravam cenas da vida de alguns dos 3 mil judeus que ali moravam. Depois do massacre, restaram 80 na cidade.


“Quando achei os filmes, eles estavam numa situação horrível, se deterioraram tanto que não dava para ver. Mas nós havíamos passado todo o conteúdo para VHS nos anos 1980, e ainda tínhamos essas fitas. Então pude assistir ao conteúdo e, assim que vi, soube que tinha uma importância histórica. Foi nesse momento que a história que estava escrevendo virou a história da minha vida.”


Rastreando personagens

Kurtz entrou em contato com o Museu do Holocausto dos Estados Unidos e doou o filme para o acervo. O museu restaurou e digitalizou as imagens e as deixou disponíveis para visualização em seu site. “Dois anos depois de ter achado o filme, uma mulher em Detroit assistiu e reconheceu seu avô, que tinha 13 anos na época. E ele estava vivo! De todo o trabalho que tinha feito, foi meio por acaso que essa primeira pessoa foi identificada, e ela conseguiu identificar outras.”


Frame do vídeo dos avós de Glenn Kurtz em que Maurice Chandler aparece no canto esquerdo (Foto: US Holocaust Memorial Museum, gift of Glenn Kurtz)

Frame do vídeo dos avós de Glenn Kurtz em que

Maurice Chandler aparece no canto esquerdo

(Foto: US Holocaust Memorial Museum)

Pelo contato com a neta, o autor marcou um encontro com a família de Maurice Chandler. “Assim que sua neta me ligou, nós estávamos rindo no telefone, porque é uma coisa tão maravilhosa, ela me contou que seu avô sobreviveu sozinho, ele foi o único membro da família a sobreviver, conseguiu escapar com documentos falsos e por isso ele não tinha nenhuma foto ou registro de sua infância. Então, se reconhecer com 13 anos nesse bairro com essas pessoas que ele conhecia tinha sido uma extraordinária recuperação de um período da vida dele que havia sido perdido”, disse Kurtz ao G1.


O autor levou algumas pessoas de sua família ao encontro – que eles chamaram de “reunião”, apesar de nunca terem se encontrado antes. A partir daí, outras sete pessoas que apareciam no filme foram identificadas e entrevistadas para o livro.


O que sobra?

Kurtz diz que, assim como a personagem que criou para seu romance, desde o momento em que viu as imagens do vídeo dos avós pela primeira vez, ele soube que estava diante de algo especial e que deveria ser preservado. “Parado na minha sala, assistindo ao filme novamente no video-cassete, eu percebi que os três minutos de imagens do meu avô poderiam ser as únicas imagens em movimento na existência da cidade e de seus habitantes antes da destruição”, escreveu o autor no livro.


Maurice Chandler, em vídeo de 2012 (Foto: Reprodução/Youtube United States Holocaust Memorial Museum)Maurice Chandler, em vídeo de 2012 (Foto:

Reprodução/Youtube United States Holocaust

Memorial Museum)

“O filme pegava detalhes tão precisos e senti a responsabilidade de tentar entendê-lo nesse mesmo nível de detalhes. Mas, claro, mais que isso, porque os nazistas quiseram apagar todas as memórias e todos os rastros de suas existências e esse era um rastro que tinha sobrevivido, senti que, ao aprender de maneira precisa a memória de cada pessoa naquele filme, estaria fazendo algo pra salvar uma memória que seria perdida”, disse o autor aoG1.


“Quando encontrei o filme, meu pai estava muito doente e pouco depois que doei o vídeo, ele morreu. E fui consumido por essa ideia, questionava o que fica quando alguém morre, o que sobra. O que a gente sabe sobre a vida dos nossos pais e avós? É geralmente muito pouco, são algumas histórias, onde eles nasceram ou estudaram. E senti o mesmo com essa cidade, porque a cidade inteira foi destruída e esses poucos minutos sobreviveram.”


O livro fala sobre memória, registros e história, e leva o leitor a vivenciar os momentos de reconhecimento dos sobreviventes ao reviver suas próprias histórias perdidas. Um desses momentos, do encontro de Maurice Chandler com o autor, foi registrado e pode ser visto em um vídeo online (em inglês).


O extermínio de judeus na Segunda Guerra fez com que as imagens de férias dos avós de Kurtz virassem um documento histórico. “É porque nós sabemos o que acontece depois que faz dessas imagens tão poderosas. As pessoas dali não sabiam. Meus avós não sabiam, eles só estavam de férias e foram visitar uma cidade. Sem a guerra, elas ainda seriam importantes, já que é um período da história, é interessante saber como era a vida em 1930 na Polônia, mas acho que é porque nós sabemos o que está para acontecer e vemos os rostos felizes, sorrindo, e sentimos quão vulnerável e ameaçados eles estão. Acho que o nosso saber é que dá às imagens tanto poder.”




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