25/05/2015

Ruas escuras, almas sujas


Dashiel Hammet criou uma atmosfera noir para San Francisco que até hoje envolve a cidade.


Por Marco Lacerda*


 Dashiel Hammet, nome gravado no submundo de San Francisco<i></i>




Dashiel Hammet, nome gravado no submundo de San Francisco<i></i>




Dashiel Hammet, nome gravado no submundo de San Francisco<i></i>




Dashiel Hammet, nome gravado no submundo de San Francisco<i></i>




Dashiel Hammet, nome gravado no submundo de San Francisco<i></i>




Dashiel Hammet, nome gravado no submundo de San Francisco<i></i>




Dashiel Hammet, nome gravado no submundo de San Francisco<i></i>




Dashiell Hammet é o pai do romance policial americano e um dos precursores da literatura noir. Entre seus personagens mais marcantes, criou os detetives Sam Spade, Nick e Nora Charles e o Continental OP. A propósito, quem nunca ouviu falar em filme noir? A expressão remete aos recantos escuros e degradados de uma cidade grande, a boates enevoadas de fumo em ruas desertas e molhadas de chuva, e a uma fauna humana composta por mulheres sedutoras e cheias de segredos, protagonistas (não raro detetives particulares) destilando cinismo, gângsteres apaixonados e violentos. Tudo isso, claro, com um blues tocando ao fundo.


Foi Dashiell Hammett (1894-1961) o grande estilista do gênero noir, com seus romances ambientados nos bas-fonds de San Francisco, que inspiraram grande parte de sua obra, povoados de personagens torpes e de mulheres fatais, perseguidos por detetives desiludidos, e, sobretudo, com uma narrativa revolucionária, que logo contaminaria o cinema.


Por 10 dólares ao dia, o escritor Dashiell Hammett, que começou na vida como detetive, passa horas em emboscadas debaixo de alpendres de prédios, espionando e seguindo suspeitos. Com o seu terno bem cortado, sua gravata, seu bigode de dândi, esse cara alto e elegante esconde um entalhe no crânio, sob o seu impecável chapéu de feltro. Tem cicatrizes nas pernas, cospe sangue. É um tuberculoso alcoólatra.


Oficialmente, é um detetive particular, da agência Pinkerton. Visceralmente, um agente de atividades incertas e suspeitas. Assombra a cidade dos vícios e das corrupções, seus bares, suas docas, suas pistas de corridas de cavalos e ringues de boxe. Hammett não é um homem propenso a proteger a propriedade privada, nem a se tornar cúmplice das injustiças sociais. Desânimo, desgosto, demissão.


Hammett renasce no início dos anos 20, como escritor. Inspirado nos personagens duvidosos que ele freqüentou, naqueles casos sórdidos que considera “mijo de asno”, redige novelas que são publicadas pela revista mensal “Black Mask” (Máscara Negra). Contratado como redator publicitário de meio-período por um joalheiro, ele enviou inicialmente seus primeiros textos para a revista “Smart Set” (precursora da “New Yorker”).


Foi então que descobriu, assim como fariam depois dele William Burnett, Don Tracy, James Cain ou Horace Mc Coy, vindos do jornalismo esportivo ou criminal, que era o autor sonhado pelas “pulp magazines”, aquelas revistas que vendem tenebrosas sensações impressas em papel de má qualidade, e que inspirariam o título do filme “Pulp Fiction”. Assim, “Black Mask” (cujo nome atiça a mitologia do lobo negro encampado pelos heróis da literatura popular) foi lançada para recuperar as finanças da “Smart Set”. Aos poucos, ele vai evoluir em direção á literatura “hard-boiled”, a narrativa “dura na queda”.


Homens melancólicos dentro de barzinhos sombrios, mulheres ruivas flamejantes trajando enlouquecedores vestidos tomara-que-caia, emboscadas dentro de becos sem saída, uma pin-up medindo de alto a baixo um canalha metediço enquanto fuma um cigarro ou o ameaça com uma arma, uma sombra inquietante sobre um muro, um carro que derrapa na noite ou o fantasma de uma loira errando debaixo da chuva: foi lá, nas revistas “pulp”, os livrinhos brochados baratinhos, que nasceu um gênero que prosperou, celebrando o crepitante casamento da metralhadora com a máquina de escrever, e mais tarde as bodas negras dos anjos de rostos sujos com o cinema.


Se hoje nós podemos falar de filme “noir”, se Quentin Tarantino fez de Uma Thurman uma corrosiva sedutora em “Pulp Fiction” (“Tempo de Violência”, 1994), isso se deve à glória dos “hard-boiled” de capas berrantes (capas essas que influenciariam os cartazes dos filmes tenebrosos), e à maneira com que Dashiell Hammett transcendeu essas histórias onde o detetive privado se preocupa menos em provar sua engenhosidade em manipular um passe-partout e gazuas do que em fumar toneladas de cigarros e esvaziar garrafas de whisky em miseráveis quartos de hotéis.


“Dashiell Hammett é o anjo tutelar”, diz Jean-Bernard Pouy, o inventor, em 1995, do Polvo, um personagem que ganhou vida nas mãos de vários autores. “Em primeiro lugar, é o homem que exerce o fascínio. Mais do que os outros, ele se aproxima do ideal dos escritores da escola do novo romance policial francês: um cara para quem a escrita é importante, porém não necessária. Um cara que é capaz de desaparecer para beber, viver, amar, atuar como militante. Nós fomos acusados de ser filhotes de Maio de 68. Ledo engano! Tudo vem dele, um grande ator do seu tempo!”


“Hammett e o jazz: foi nesses dois elementos que nós estivemos mergulhados. É o emblema do thriller de motivações políticas”, diz o cineasta Alain Corneau, enquanto um outro profissional do ramo, Francis Girod, sublinha sua narrativa, “que respirava cinema em cada frase”, e que o escritor Michel Le Bris, criador do Festival internacional do livro de Saint-Malo (oeste da França), celebra “a sensação de uma inesgotável energia, de uma narrativa dedicada às margens, às vielas sórdidas, às partes contíguas de cozinhas de lanchonetes suspeitas, uma escrita finalmente liberada das formalidades hipócritas e das preciosidades de salão”.


“Sou duro na queda e tenho a pele dura por cima do que restou da minha alma e, após vinte anos passados no mundo do crime, eu posso assistir a qualquer assassinato sem ver nele outra coisa que uma forma de ganhar meu pão, o meu trampo cotidiano”. Tal é a cínica profissão de fé de Continental Op, o detetive que Hammett vai transformar no herói de 26 novelas e dois romances, antes de imaginar Sam Spade, o narrador de “O Falcão Maltês”.


Raymond Chandler encontraria uma frase imortal para celebrar a revolução iniciada por Hammett: “Ele tirou o crime do vaso veneziano no qual estava metido para arremessá-lo na sarjeta. Não era uma má ideia essa de afastá-lo das concepções pequeno-burguesas que se compraziam em descrever a maneira com que as garotas da alta sociedade mordiscam asas de frango”.


Dashiell Hammett está pouco se lixando com as reações de repulsa da National Organization of Decent Literature (Organização nacional em prol da literatura decente), que pede de vez em quando à Brigada criminal para confiscar certos livros de bolso, por demais afastados dos enigmas bem comportados de Agatha Christie. Ele é daqueles que acrescentam drágeas com sabores agressivos nos thrillers retóricos demais e que jogam pimenta-do-reino sobre “os discursos demagógicos dos políticos, dos pregadores, dos homens de lei”.


Lançados abertamente como paralelepípedos sobre a vidraça da América capitalista, os textos de Hammett combinam crítica social com violência documentária e lirismo brutal. Com ele, não se trata mais de valorizar as sutis deduções de um investigador invulnerável, e sim de mergulhar um incorruptível desiludido numa atmosfera turva, de fazer com que ele reaja com os seus nervos e suas tripas, de levá-lo a enfiar as mãos no meio do lixo, de conduzi-lo a se introduzir entre as crápulas


Não há mais crimes perfeitos, apenas assassinatos odiosos. Não há mais um enigma pretexto para o divertimento cerebral, e sim a sensação sufocante de estar se imiscuindo no império do mal. Tudo isso é contado por meio de um estilo eficaz, que “estala como uma chicotada”, uma linguagem crua numa multiplicação de seqüências rápidas e frenéticas.


É dessa forma que, até o ano de 1952 – data na qual a cruzada anti-comunista iria persegui-lo sem trégua -, Hammett foi constantemente reeditado e que a sua influência foi crescendo. Foi assim que os estúdios de Hollywood compraram os direitos de adaptação dos “pulps”, e contrataram alguns dos seus autores como roteiristas. Foi assim que, transposto para o cinema por John Huston em 1941, “O Falcão Maltês” deu ao filme “noir” um estímulo radical. O cineasta impõe certos lugares (o escritório do detetive, o apartamento da sedutora, as vielas abandonadas), objetos (telefone, chapéu de feltro, cigarros), personagens (mulher fatal dos olhos de cobalto, levantino perfumado, querubim assassino, gângster epicurista de estertores asmáticos), e um ambiente mórbido no qual vagueiam medos e desejos.


O herói é um homem sem estado civil nem moral, que maneja o humor a frio e a ironia displicente. Ele pratica uma linguagem e adota uma conduta que chocam as velhas senhoras da aristocracia, e exibe uma fleuma misógina para suas amantes. Hammett sabia muito sobre os matadores profissionais e os maníacos sexuais, os políticos corruptos e as damas ninfomaníacas, os advogados desonestos e os gerentes de boates suspeitas, os antros de jogatina. Do assassinato que dá a largada dos seus mistérios, ele só deixa entrever um tiro de revólver em meio à neblina. Então, “os diálogos falam no lugar das armas, os personagens metralham uns aos outros com palavras” que se dedicam a “complicar os mal-entendidos, a engabelar o adversário”.


Enquanto o filme “noir” vai se propagando em todo lugar, mergulhado na leitura de “Em Busca do tempo Perdido”, Dashiell Hammett escreve a sua companheira Lilian Hellman: “Se Proust não resolver dar logo um fim a Albertine, ele corre o risco de perder um cliente!”.


San Francisco de Dashiell Hammett. Veja o vídeo.

*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Domtotal.




http://www.paroquiasantoafonso.org.br/?p=14291

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