23/08/2015

Jimmy Carter é o ‘cara’

Dorrit Harazim*



Ao deixar a Presidência dos Estados Unidos, ele foi ser cidadão. Um cidadão melhor do que ele foi presidente


Pobre juiz Sérgio Moro. Basta ele adentrar algum evento público e um inevitável “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas…” brota de algum canto, rapidamente encorpado pela maioria mais desinibida dos presentes. Nada que o magistrado possa fazer senão aguardar resignado o final da cantoria.


Graças aos 17 meses de descida aos porões da alma humana da Operação Lava-Jato, Moro sabe melhor do que ninguém o quanto a raça dos bípedes é gelatinosa. Ele sabe sobretudo que não é de clamor por um salvador de pátria que o Brasil precisa. Até porque o posto não existe. Ou quando parece existir é porque o índice nacional de cidadania já baixou do volume morto. Nas poucas vezes em que fala em público, Moro procura sinalizar que a solução deve ser procurada na sociedade como um todo.


Por coincidência, o ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter reapareceu no noticiário esta semana para servir de colírio cívico aos desesperançados com a remela política em Brasília. O anúncio que Carter tinha para fazer não era alvissareiro — aos 90 anos de idade, ele está com tumores no cérebro e “a vida nas mãos de Deus”. Ainda assim, foi um bálsamo ouvir o relato cândido e sem firulas de um dos líderes mundiais menos midiáticos e mais coerentes dos tempos modernos.


Carter tinha tudo para dar errado em Washington, e deu. Primeiro ocupante da Casa Branca vindo de um estado sulista (seu avô serviu no Exército Confederado), era de família profundamente batista e fora plantador de amendoim na Geórgia até entrar para a política.


Tinha jeito de caipira, sotaque imperdoável e introduziu um estilo de governança que a elite de Washington pensou ser passageiro: ele dispensava a saudação “Hail to the Chief”, tradicional em cerimônias públicas, vendeu o iate presidencial, carregava a própria bagagem de mão, cortou o uso de carros oficiais para o primeiro escalão do governo.


Não desencadeou nenhuma guerra, não bombardeou civis em país algum, não violentou a Constituição, devolveu ao Canadá o seu Canal e embicou a política externa dos Estados Unidos para uma América Latina mais democrática. Também o histórico acordo de paz entre um país árabe (Egito) e Israel, válido até hoje, levou a assinatura de Carter.


Nada disso teve relevância para o eleitor que o enxotou de volta para o Sul e lhe negou a reeleição em 1980. Foi a fracassada tentativa de resgatar 52 reféns americanos espetaculosamente aprisionados no Irã por quase 444 dias que jamais lhe foi perdoada.


Um presidente incapaz de impedir a humilhação dos Estados Unidos em praça pública não merece assento na Casa Branca. Em seu último discurso à nação, Carter despediu-se com as seguintes palavras: “Entrego as responsabilidades oficiais que assumi neste cargo e reassumo o único título da nossa democracia que tem valor maior do que o de presidente — o título de cidadão”.


Uma das singularidades de Carter é dizer o que pensa e fazer o que diz. Assim, ao invés de curar a nostalgia do poder num campo de golfe, ele foi ser cidadão. Um cidadão melhor do que ele foi presidente.


Durante a campanha para a Casa Branca, ele pronunciara sem qualquer constrangimento um dos discursos mais ridicularizados nos salões da capital. Prometera promover “um governo tão bom e honesto, decente, compassivo, competente e caloroso quanto o povo americano”. Desprovido do cinismo prevalente em sobreviventes na política, Carter acreditava serem essas qualidades também esperadas de um governo.


Como presidente, falhou. Como cidadão, está feliz e bombando. Único homem público americano a receber (e merecer) o Nobel da Paz após deixar o poder, ele ganha seu sustento não com palestras, mas como autor prolifico — já publicou 21 livros, nenhum dos quais é irrelevante.


Habitat for Humanity, o programa mundial de construção de habitações populares ao qual é vinculado, ocupa um naco substantivo do seu tempo até hoje, junto com o monitoramento de eleições em países de democracia vulnerável.


Carter não hesita em jogar o peso de sua voz para condenar violações de direitos e fazer denúncias. Sabe que uma das obrigações primeiras do cidadão é ser persistente nas cobranças.


Com o passar dos anos, veteranos que sentiam urticária à simples lembrança do seu nome já conseguem reconhecer nele alguns dos atributos mais citados — respeito, coerência, integridade pessoal, credibilidade.


De todo modo, não custa guardar na memória a advertência feita por George Orwell no ensaio sobre Gandhi de que “santos devem ser sempre julgados culpados até prova em contrário”. O juiz Moro talvez concorde.


*É jornalista


http://oglobo.globo.com/opiniao/jimmy-carter-o-cara-17272199



Jimmy Carter é o ‘cara’

Um comentário :

  1. Não entendi o seu parecer sobre Moro. Por favor, esplique melhor sua posição sobre esse senhor.

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