09/04/2016


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Por Massimo Faggioli*



Amoris Laetitia, fruto do longo “processo sinodal” que se desdobrou entre 2014 e 2015, está em conformidade com o que acabamos compreendendo como o estilo pastoral e não acadêmico do Papa Francisco. Esta exortação inspira-se nas catequeses de Francisco e João Paulo II, bem como em documentos de Conferências Episcopais ao redor do mundo. E, com 52.500 palavras, ela é bem grande. Mas como realmente o documento aborda as questões por vezes contenciosamente debatidas que surgiram no curso dos encontros sinodais em Roma?


Se há uma chave interpretativa, esta é a declaração que aparece logo no início do texto: “quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. Naturalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isto não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela”. Mesmo assim,Amoris Laetitia é um documento construído cuidadosamente e que não dará a nenhum dos lados opostos nos debates eclesiásticos motivo algum para alegar “vitória” ou “derrota”. O Papa Francisco emitiu uma exortação que representa a primeira tentativa de um papa de demonstrar como a colegialidade episcopal do Vaticano II deve funcionar. Baseando-se nos relatórios finais dos Sínodos de 2014 e 2015, o documento leva em conta os debates reais e divisores que aconteceram nas semanas de discussões sobre a família, o matrimônio, o divórcio e a homossexualidade. Na seção sobre o acompanhamento pastoral, por exemplo, Francisco cita extensivamente três parágrafos do relatório final do Sínodo 2015 que recebeu a quantidade mais alta de votos contrários: o Parágrafo 84 (72 votos contra); o Parágrafo 85 (80 votos contra); e o Parágrafo 86 (64 votos contra).


Amoris Laetitia caracteriza-se, no geral, por três tipos identificáveis de texto. O primeiro baseia-se no magistério anterior de Francisco para ajudar ilustrar as suas intenções e para mostrar aonde ele quer conduzir a Igreja; um outro parece esforçar-se num compromisso entre as orientações que ficaram evidentes no curso do debate sinodal. E o terceiro toca nas questões de gênero, masculino e feminino, e educação na família; esta é a parte mais fraca do documento.


A sugestão para onde Francisco quer levar a Igreja encontra-se no Capítulo 1, parágrafos 36 a 38:


“Convém [fazermos] uma salutar reação de autocrítica. Além disso, muitas vezes apresentámos de tal maneira o matrimônio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação. (…) Durante muito tempo pensámos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas. (…) Muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o matrimônio e a família como um reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus, o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera”.


No Capítulo 8, há uma declaração sobre a necessidade de diferenciar e distinguir entre situações diferentes dos católicos divorciados e que voltaram a casar e sobre o valor do matrimônio civil. De interesse particular (se recordarmos os diálogos afiados sobre o tema entre cardeais, especialmente o discurso de abertura do cardeal húngaro Péter Erdő no Sínodo de 2015): “Não é uma ‘gradualidade da lei’, mas uma gradualidade no exercício prudencial dos atos livres em sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar plenamente as exigências objetivas da lei”.


No Capítulo 8, Francisco também levanta a questão do discernimento quando se está diante de casos difíceis que não coincidem com o magistério da Igreja: “este discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa” (Parágrafo 303). Muito importantes nesta seção são as notas de rodapé – especialmente a n. 329, sobre como “faltam algumas expressões de intimidade, não raro se põe em risco a fidelidade e se compromete o bem da prole”, quando os fiéisdivorciados e recasados vivem juntos “como irmão e irmã”. Não existem nenhuma menção sobre “comunhão espiritual” (ou seja, não sacramental) aos divorciados e recasados – uma mudança significativa com relação ao período pré-Francisco.


E, quanto à questão do acesso à Eucaristia aos divorciados e recasados, há uma abertura estreita porém visível na porta:


Não se deve esperar que o Sínodo ou esta exortação apresente um novo conjunto de regras gerais, canônicas em sua natureza e aplicáveis a todos os casos. O que é possível é simplesmente um impulso renovado a fazer um discernimento pessoal e pastoral responsável dos casos particulares, um discernimento que reconheceria que, “uma vez que ‘o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos (…) Uma vez que na própria lei não há gradualidade (cf. Familiaris consortio, 34), este discernimento não poderá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja. Para que isto aconteça, devem garantir-se as necessárias condições de humildade, privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina, na busca sincera da vontade de Deus e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita à mesma’. Estas atitudes são fundamentais para evitar o grave risco de mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente ‘exceções’, ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores” (Parágrafo 300).


Francisco parece debater-se no compromisso entre as sensibilidades magisteriais e pastorais no Capítulo 3, onde citaHumanae Vitae, mas sem a ênfase na contracepção (parágrafos 68 e 82), e no Capítulo 6, que destaca o papel da consciência (Gaudium et Spes), mas também incentiva o planejamento familiar natural. Há quase um silêncio pleno a respeito da homossexualidade; apenas os parágrafos 250 e 251 do Capítulo 6 falam sobre o tema, e o que aí se diz equivale a uma paráfrase do Catecismo: “Por isso desejo, antes de mais nada, reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar ‘qualquer sinal de discriminação injusta’ e particularmente toda a forma de agressão e violência”. A isso segue-se imediatamente uma crítica sobre o matrimônio homoafetivo: “não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família” (Parágrafo 251). Esse “compromisso” provavelmente reflete um revés em 2015 nos comentários a respeito da homossexualidade ocorrido no Sínodo de 2014.


O terceiro tipo de texto – pertencente a gênero, masculino e feminino, e a educação na família – soa dolorosamente inadequado para um discurso sobre a matrimônio e o família. A linguagem parece ultrapassada, para dizer o mínimo, e confirma a maior fraqueza de Francisco em torno de uma das problemáticas mais urgentes na Igreja contemporânea: amulher.


No geral, é provável que Amoris Laetitia vá ao encontro das esperanças de quem estava em busca de alguma mudança pastoral, porém irá decepcionar aqueles que esperavam ingenuamente por um repensar radical da doutrina. Qualquer movimento no curto prazo em questões delicadas (especialmente no tocante aos divorciados e recasados) teria resultado, por parte de bispos e pastores, em más notícias para um número significativo de fiéis. EmboraFrancisco parece assumir riscos em questões de inclusão e ao desafiar a minoria tradicionalista, ele é menos assertivo quanto em questões como gênero e educação. Ele pode estar pagando o preço do estranhamento que já dura décadas entre o magistério e a teologia; ainda que Francisco esteja diminuindo a lacuna existente entre o magistério e a realidade pastoral, a lacuna entre o magistério e a teologia permanece grande.


Mas a direção deste pontificado vai no sentido de um magistério não ideológico, uma Igreja mais inclusiva, uma Igreja da misericórdia. Uma das referências mais importantes de Amoris Laetitia é a alocução de Francisco proferida no final do Sínodo dos Bispos de 2015: Um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja ‘para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas’” (Capítulo 8, parágrafo 305).


Resta saber ainda como o texto será recebido entre os teólogos, os fiéis e, em particular, entre os bispos. Não foi somente nos dias e semanas precedentes à publicação desta exortação que ela foi alvo de críticas por parte de cardeais e bispos, mas durante todo o tempo que durou o processo sinodal. Este fenômeno ficou evidente logo no início do pontificado de Francisco, mesmo assim, após três anos, a mudança que ele introduziu é inegável.


Commonweal, 08-04-2016.


*Professor de História do Cristianismo na University of St. Thomas, EUA.



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