Sete anos, um mês e 22 dias depois, o passado está vivo. Ainda não é nem passado, como escreveu o romancista americano William Faulkner. Parece que foi ontem, parece que nunca aconteceu: o dia em que o deputado Roberto Jefferson revelou que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva botara o Congresso no bolso. Era 6 de junho de 2005, nascia o mais grave escândalo de corrupção da história recente do Brasil. Dias depois, Jefferson afirmou diante das câmeras de televisão: “É voz corrente em cada canto desta Casa, em cada fundo de plenário, em cada banheiro, que o senhor Delúbio, tendo como pombo-correio o senhor Marcos Valério, um carequinha que é publicitário lá em Minas Gerais, repassa dinheiro a partidos que compõem a base de sustentação do governo, num negócio chamado mensalão”. Jefferson acusou o deputado José Dirceu, então primeiro-ministro informal do governo, de comandar o esquema. Contou que advertira o presidente Lula sobre a mesada – e ele, no mínimo, nada fizera. A política brasileira, ainda se recuperando do impeachment do primeiro presidente eleito desde a ditadura militar, deparava com a possibilidade de um segundo.
O impeachment não aconteceu. Seguiram-se investigações sobre o caso em CPIs no Congresso, na Polícia Federal, na imprensa e na Procuradoria-Geral da República. Todas – todas – produziram provas e constataram que Jefferson contara, na essência, a verdade: o PT, sob a liderança de Dirceu, montara um esquema de pagamento maciço de dinheiro em troca de apoio político no Congresso. Altos representantes do Poder Legislativo se venderam a altos representantes do Poder Executivo. Não há caso que se compare em gravidade e dimensão institucional. É por isso que, a partir das 14 horas desta quinta-feira, os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, os mais altos representantes do Poder Judiciário, darão início ao julgamento mais importante na história da corte. Um julgamento que mostrará a maturidade da democracia brasileira – e que, sejam os réus absolvidos ou condenados, porá fim ao passado.
Durante um mês, os ministros do STF debaterão se os 38 réus acusados de participar do mensalão têm culpa ou não. Farão isso mediante a análise rigorosa das mais de 50 mil páginas de documentos contidas nos autos do processo. Se concordarem com a denúncia da Procuradoria-Geral da República, condenarão os réus por crimes como corrupção ativa, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha (leia o quadro abaixo). Dirceu, acusado pela Procuradoria-Geral da República de ser o chefe do mensalão, poderá ser condenado por corrupção ativa e formação de quadrilha. Se discordarem da linha de raciocínio estabelecida pelo Ministério Público (MP) para enquadrar os réus em cada crime, irão inocentá-los.
Os ministros, portanto, não julgarão a existência do mensalão, como pretendem fazer crer setores do PT. “Vamos julgar se o MP conseguiu estabelecer a responsabilidade de cada um dos réus no crime maior, que é a compra do Congresso”, diz um dos ministros que mais estudaram o caso. A miríade de provas que constituem os autos, examinados por ÉPOCA, não deixa dúvidas: o esquema que ficou conhecido pelo nome de mensalão é um fato. Todos os investigadores da PF e do Ministério Público que atuaram no caso concordam – e concordam também que Dirceu era o líder do esquema. Esses fatos existem por si mesmos e independem da condenação ou absolvição dos réus – ou da opinião de quem quer que seja. Em síntese, eis os fatos:
• O grupo político liderado por Dirceu e composto de Delúbio Soa¬res, então tesoureiro do PT, e José Genoino, presidente do partido, pagou R$ 55 milhões a 18 parlamentares da base aliada, entre eles líderes desses partidos, nos anos de 2003 e 2004. As principais provas disso estão nos depoimentos de Marcos Valério, do próprio Delúbio e dos demais líderes partidários, assim como nos extratos bancários das contas de Marcos Valério;
• O dinheiro era repassado por intermédio do esquema armado pelo publicitário Marcos Valério, que já havia empregado estratagema semelhante para financiar campanha de tucanos em Minas Gerais. Ele desviava os recursos de contratos públicos que suas agências mantinham com o governo ou de serviços de lobby prestados aos bancos Rural e BMG – que facilitavam a lavagem dos recursos. As principais provas disso estão nas perícias conduzidas pela Polícia Federal, pela CPI do Congresso e pelo MP. As perícias esquadrinharam as contas bancárias ligadas a Marcos Valério e os contratos firmados pelas agências dele com o governo Lula;
• José Dirceu, segundo Marcos Valério afirmou à Procuradoria-Geral da República, sabia do dinheiro; e, segundo Delúbio Soares admitiu à Justiça, Dirceu sabia de tudo o que ele, Delúbio, fazia (embora, anos depois Delúbio tenha voltado atrás em suas declarações);
• Valério prestou dois favores à ex-mulher de Dirceu, Maria Ângela Saragoza: um emprego numa agência do BMG e um empréstimo de R$ 42 mil no Banco Rural. Maria Ângela usou os R$ 42 mil para comprar um apartamento – mas só conseguiu comprar o novo apartamento depois de vender o imóvel em que morava a Rogério Tolentino, sócio de Valério;
• Lula não apenas fora alertado para a existência do esquema como estava presente quando o acordo com o PR, então PL, foi fechado, ainda em 2002. É o que afirmou o deputado Valdemar Costa Neto ao MP. Valdemar disse que, pouco antes de seu partido formar a chapa presidencial com o PT, houve uma reunião em Brasília na casa do deputado petista Paulo Rocha, para discutir o acerto financeiro. Valdemar queria R$ 10 milhões para apoiar o PT. Estavam lá, segundo Valdemar, Lula, Dirceu, Delúbio e José Alencar, então candidato a vice. Valdemar disse também ao MP que Delúbio o convidou a conversar num dos quartos do apartamento. Lula disse a Alencar: “Deixa os dois conversarem, que isso é problema de partido, não é problema nosso”. Delúbio, disse Valdemar, tentou regatear os R$ 10 milhões. Valdemar contou que foi irredutível: sem dinheiro, não haveria coligação. Nesse momento, segundo seu relato, Dirceu entrou no quarto e perguntou como estavam as negociações. Delúbio disse: “Valdemar está irredutível”. Depois, topou: “Olha, vou te pagar de acordo com a entrada de recursos”.
A lógica da vitimização
No dia 20 de outubro de 2009, Dilma Rousseff, então ministra-chefe da Casa Civil, recebeu em seu gabinete a juíza Pollyanna Martins. Dilma fora arrolada como testemunha de defesa de Dirceu no processo do mensalão. Os dois são “camaradas em armas”, como definiu afetuosamente Dirceu certa vez. Por ser ministra, Dilma poderia escolher a data e o local para ser ouvida. No depoimento, Dilma, que chegara ao poder com Lula, mostrou-se uma boa testemunha para Dirceu. Disse que soubera do mensalão apenas pela imprensa e que “não poderia afirmar” se Dirceu, seu antecessor na Casa Civil, também cuidava de assuntos do PT quando ministro. Ela colaborou, portanto, para fortalecer o raciocínio da defesa de Dirceu – os advogados dele argumentam que, como ministro, Dirceu era uma criatura política diferente do Dirceu petista e não tinha conhecimento das atividades financeiras operadas por Delúbio. Ao encerrar seu depoimento, Dilma afirmou que “acha o ex-ministro José Dirceu uma pessoa injustiçada e tem por ele grande respeito”.
Dilma ecoou o que se tornara uma obsessão do PT paulista, o PT de Lula e Zé Dirceu, o PT que chegara ao governo e no qual ela embarcara às pressas, pouco antes do triunfo eleitoral de 2002. A obsessão consistia em vitimizar os protagonistas do mensalão e minimizar, quiçá apagar, os crimes dos quais são acusados; em reescrever, com as tintas da ficção e da ideologia, o passado do PT no poder, de modo a assegurar o poder do PT no futuro. A negação dos fatos, a consequente “batalha jurídica” no Supremo, surgia apenas como nova etapa do projeto, interpretado por Dirceu como luta constante contra qualquer ator político, econômico ou ideológico contrário ao PT. Sua linguagem bélica vê em qualquer um que discorde da lente política petista um inimigo à espreita, atocaiado e pronto para investir contra o partido na primeira oportunidade – esteja ele na oposição, na imprensa ou no MP.
A reeleição de Lula – apesar das pancadas colossais recebidas por ele no decorrer do mensalão – amainou o clima político do país. A economia começou a crescer, os programas sociais do governo passaram a funcionar e as condições de vida da população melhoraram substancialmente. Os anos se encarregaram de acomodar o trauma do mensalão no sótão da memória dos brasileiros. A pungente lembrança da abundância de fatos, personagens e desculpas cínicas reduziu-se a vagas imagens de Jefferson e Dirceu duelando na CPI, de Marcos Valério e Duda Mendonça admitindo malfeitos com o dinheiro dos outros, dos deputados mensaleiros absolvidos na Câmara. A palavra mensalão virou sinônimo de corrupção. Estendeu-se rapidamente o apelido a outros casos de falcatruas com dinheiro público. Aos poucos, a palavra perdia em significado o que ganhava em popularidade.
Havia espaço para contestar o passado. Não tardaram a aparecer as primeiras versões de que o mensalão original fora inventado, uma conspiração para derrubar o primeiro operário eleito presidente do país. O mesmo Lula que fora à TV pedir desculpas aos brasileiros no ápice do escândalo passara a anunciar que o mensalão era “folclore”. Sua popularidade continuou crescendo. De “folclore”, o mensalão tornou-se “farsa”. Lula não se sentia mais “traído por práticas inaceitáveis”. Agora, dizia que era preciso “desmontar” o mensalão. Delúbio, depois de expulso do PT, saiu das sombras, percorreu o país pregando a palavra do partido, fez campanha para Dilma – e foi readmitido no PT no ano passado. Dirceu seguiu caminho parecido, embora tenha conciliado suas atividades como líder informal no PT às de lobista de sucesso.
Sobrou dinheiro – parte dele público – para financiar esse movimento político e jurídico. Dinheiro que bancou para os mensaleiros o melhor da advocacia (e o pior do jornalismo). Delúbio, embora diga que não tem um centavo, é defendido desde o começo do caso pelo criminalista Arnaldo Malheiros Filho. Blogs de ex-jornalistas, quase todos com patrocínios de estatais e ministérios, dedicam-se há anos a tentar “desmistificar” o mensalão, atacando ferozmente a reputação de quem quer que atravesse o caminho do PT. Os integrantes desse movimento atuam em uníssono. A trôpega cadeia lógica que governa o discurso deles apresenta falácias ou meias verdades – e meia verdade, como diz o provérbio, é uma mentira inteira.
A primeira etapa, a mais rudimentar, é negar por completo a existência do mensalão. Basta afastar-se do teor do caso e se limitar a dizer que tudo foi apenas uma conspiração das elites ou dos tucanos – os adversários favoritos dos petistas. Como no campo da ideologia a afirmação pode fazer sentido, essa versão perdura entre os militantes do PT. Não há, porém, fato que a fundamente. Pelo contrário. No auge da crise, em agosto de 2005, quando alguns pensavam no impeachment de Lula, houve uma decisão consciente dos líderes da oposição: eles evitaram cruzar essa linha. Tanto por cálculo político quanto por medo do risco institucional que isso representaria para o país. Trata-se de um fato.
A segunda etapa lógica, que às vezes se faz acompanhar da primeira, estabelece que não houve compra de apoio político no Congresso, apenas “caixa dois de campanha”. Aqui, encontra-se uma meia verdade (também houve caixa dois no mensalão) a serviço de uma mentira inteira (negar a gravidade institucional do caso). O objetivo de dizer que não houve compra de apoio político é apagar da história a venda de congressistas a um projeto de poder – e os fatos associados a esse crime, que sobrevivem tibiamente na memória coletiva do país. Eliminando a palavra “mensalão” e as pesadas imagens que ela carrega, cria-se o vácuo preenchido com a noção de caixa dois – ou “recursos não contabilizados”, no linguajar criado pelo advogado Márcio Thomaz Bastos e consagrado por Delúbio. Caixa dois implica um crime; “recursos não contabilizados” sugere um lapso.
A meia verdade do caixa dois costuma associar-se, na terceira etapa lógica da vitimização, à ideia de que o mensalão não existiu, pois – repare bem – petistas também receberam dinheiro do valerioduto. Portanto, prossegue o argumento, por que deputados do PT precisariam de incentivo financeiro para apoiar o próprio governo? Daí a ideia de mensalão não faria sentido. A dúvida seria legítima, não escondesse a pergunta uma definição limitada do mensalão. Como mostram as provas e explica a Procuradoria-Geral da República, o que se convencionou qualificar como mensalão não se resumiria ao pagamento de uma mesada a deputados – nem essa mesada, frise-se, pingava precisamente todo mês na conta dos parlamentares, tal qual um salário. É certo que a retórica teatral de Roberto Jefferson acomodou essa impressão. Mas, no mundo do crime, as coisas se desenvolvem com menos arte e mais substância.
O caminho do dinheiro
As verdades factuais coletadas no processo, assim como as verdades da lógica, admitem tranquilamente as nuances do mensalão. O dinheiro do valerioduto, seja desviado dos cofres públicos, seja obtido mediante lobby no governo, era entregue com regularidade aos líderes dos principais partidos da base aliada durante 2003 e 2004, os primeiros anos da administração petista. Era todo mês? Não necessariamente. Isso quer dizer que o mensalão não existiu? De modo algum. As provas mostram que havia meses em que havia mais recursos e meses em que eles minguavam. Chegou-se a descobrir todos os beneficiários? Não, infelizmente. Como o dinheiro era entregue em espécie aos líderes dos partidos, ou por doleiros, é impossível rastrear os destinatários finais – por sinal, é por isso que os criminosos costumam trabalhar apenas com dinheiro vivo. A orientação era usar o dinheiro sujo para pagar o baixo clero. Alguns dos líderes, como Valdemar Costa Neto, do PR, ou José Janene, do PP, alegaram que pagaram dívidas de partido. Mas não apresentaram notas fiscais e foram contrariados por depoimentos de doleiros e pela data dos pagamentos – alguns desses pagamentos se estenderam até 2005.
Mesada do governo, ou a prática de pagamentos regulares aos deputados da base aliada, como se queira chamar, o mensalão é um fato político. Mas não é só. O valerioduto, a engrenagem financeira que, depois de testada com os tucanos mineiros, fazia grande parte do projeto de poder do PT rodar, abasteceu toda sorte de despesas: gastos com o publicitário Duda Mendonça, que trabalhou na campanha de Lula em 2002, gastos com Freud Godoy, segurança particular de Lula, gastos com o advogado Aristides Junqueira, que “defendeu a imagem” do PT durante o caso do assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel. A lista é longa. Não é por acaso que o processo no Supremo contém 234 volumes e 500 anexos.O caso do PT é igual. Delúbio ordenava os pagamentos, Marcos Valério encarregava-se de repassar o dinheiro, e os deputados apanhavam os envelopes pardos nas agências do Banco Rural ou em quartos de hotel. Tudo na surdina. A maioria dos petistas disse que usou o dinheiro para quitar dívidas de campanha. Pode ser. Pode até haver uma ou outra nota fiscal para corroborar essa versão. Mas pouco interessa se embolsaram o dinheiro ou se quitaram dívidas do PT. Essa distinção interessa somente a quem emprega a lógica perversa que tolera malfeitos em nome do partido. Para a lei, tanto faz.
Os autos não apenas mostram que houve mensalão. Revelam também seus motivos. O mensalão aconteceu porque o projeto do PT, ou ao menos do PT capitaneado por Dirceu e Lula, determinava o controle absoluto do poder. Para atingir esse objetivo, o PT, que ganhara o governo, precisava do apoio do Congresso. Havia um pedaço do Congresso disposto a se vender – e se vendeu. Venderam-se PT, PR, PP, PMDB, PTB… Foram comprados em boa parte com dinheiro público. Esses são os fatos, e nada mudará o passado. Aos ministros do Supremo, cabe dar o veredicto sobre esses fatos – e, assim, encerrar esse triste capítulo da nossa história.
Revista Época
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