31/10/2012

Psicóloga vira patrocinadora de jovens artistas


Projeto Generosidade (Foto: reprodução)Sentada no escritório de casa, diante do computador, a psicóloga Judith Vero assiste a um vídeo do músico Thiago Bertoldi. Ele toca, ao piano, a sonata “Waldstein”, de Ludwig van Beethoven. Ela acompanha com os olhos fixos. Cantarola. Seu corpo antecipa os movimentos do músico na tela. Os ombros se contraem para cima, as mãos dedilham delicadamente o ar. “Essa não sei tocar”, diz. “Mas ele ensaiava aqui na sala de casa.” Ajudado por Judith, Bertoldi, filho de um caminhoneiro e de uma dona de casa, formou-se pianista pela Academia de Música Franz Liszt, de Budapeste, na Hungria. Judith é um mecenas, figura tão discreta quanto importante na história da arte. Com o apoio do mecenas Ferdinand von Waldstein, Beethoven compôs obras eternas. Agradecido, dedicou a ele uma sonata – aquela tocada, dois séculos depois, por Bertoldi.
Mecenas é o patrocinador de um talento artístico. A palavra vem de Caio Mecenas, político romano que, no século I a.C., apoiou poetas como Horácio e Virgílio. Não há perspectiva real de retorno financeiro, pois nunca se sabe aonde pode chegar o talento e o reconhecimento de um artista. O mecenas age guiado por seu instinto e pelo prazer de fomentar a arte. Judith identificou o potencial de Bertoldi assim que o ouviu, em 2007, em São Paulo. “Na hora, pensei: ‘É um talentaço!’” Havia alguns meses, ela buscava, em pequenos concertos, jovens que pudesse apoiar. Realizada pessoal e financeiramente, perto de fazer 70 anos, Judith escolhera o mecenato para ocupar o vazio deixado por várias perdas. O pai morrera no ano anterior, assim como o cão de estimação. O filho único mudara-se para o exterior, levando o neto. Ao mesmo tempo, Judith terminou o doutorado em psicologia. “O que eu faria até a hora de morrer? Não me conformo em fazer tricô e jogar damas”, diz. “Queria me manter ativa e não sabia como.” 
CORAÇÃO DE MÃE Judith Vero e o pianista Daniel Gonçalves, seu hóspede na semana passada. Portas abertas para músicos (Foto: Letícia Moreira/ÉPOCA)
Judith encontrou a resposta na música, uma paixão de infância abandonada por décadas. “Filha minha não será dançarina de cabaré”, ela ouviu da mãe, quando quis ser bailarina. “Menina fina tocava piano e aprendia várias línguas”, afirma. Judith aprendeu piano e tornou-se tradutora profissional. Era, de fato, uma menina fina. Seus pais haviam fugido da Hungria com ela, após a Segunda Guerra Mundial, e enriqueceram no Brasil. “Fui muito privilegiada”, diz. “Achei que deveria devolver o que recebi.” 
Quando conheceu Judith, aos 19 anos, Bertoldi queria estudar no exterior. Ele aprendeu piano sozinho, com 12 anos. Aos 15, deixou a família, em Garça, no interior de São Paulo, para estudar na capital. “Queria aprender mais”, afirma. Judith lhe disse: “Vá ao festival de Campos do Jordão e ganhe a bolsa oferecida no concurso Eleazar de Carvalho. Tenho contatos na Hungria, posso conseguir uma audição”. Bertoldi venceu, e Judith agendou sua avaliação na centenária escola de Budapeste. “O professor ficou encantado, a ponto de aceitar a inscrição fora do prazo”, diz. Além de pagar os estudos quando a bolsa de um ano expirou – cada semestre custa e 6 mil –, Judith comprou para Bertoldi um apartamento e um piano de cauda. Formado em julho, ele quer seguir carreira no exterior. “Agora, é com ele”, afirma ela.
O fruto do trabalho de Judith é reconhecido por referências da música clássica. “Bertoldi é mesmo um grande talento”, diz o professor Gilberto Tinetti, curador da Fundação Maria Luísa e Oscar Americano. “Judith é um dos três ou quatro mecenas que conheço no Brasil. É um trabalho raro. Sempre foi.”
Bertoldi é, nas palavras de Judith, o “afilhado-mor”. Há outros, como o tenor Emanoel Velozo e os pianistas Leandro Roverso, Daniel Gonçalves e Ronaldo Rolim. Todos contam com apoio incondicional e hospedagem. “É a casa da mãe joana”, diz. “Aqui, os músicos têm abrigo.” Quando estão no exterior, os pupilos são lembrados em cartazes de shows. “Ronaldo faz tudo sozinho, Thiago vive nas nuvens, e Daniel é uma mistura dos dois”, afirma Judith. O brilho nos olhos dela é de gratidão, como se ela devesse a cada músico que ajudou. “Quando eles crescem, vai junto a carreira que não fiz”, diz Judith. “É uma troca. Tenho experiência, conhecimento e dinheiro. Eles têm juventude e talento”.
Revista Época

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