31/10/2012

Elba Ramalho: “Chorei o morto errado”


ELBA RAMALHO Cantora de música popular brasileira (Foto: divulgação)"Num certo dia em 2003, quando seria entrevistada pelo Jô Soares, em São Paulo, soube da morte de um amigo muito querido, Almir Chediak. Grande produtor de songbooks (livros de letras e partituras) da música popular brasileira, Almir foi vítima de um assalto em Araras (região serrana do Rio de Janeiro). Tínhamos feito trabalhos incríveis juntos, como quando gravei CDs para os songbooks de Chico BuarqueDjavan, Vinicius de Moraes. A notícia da morte dele era como dizer adeus a alguém da minha família. Precisava me despedir pessoalmente. O tempo era escasso. Tinha de viajar para São Paulo para falar com o Jô. Minha irmã disse que ele era velado num cemitério em Botafogo (bairro do Rio). Fui direto para lá. Parei apenas para comprar lírios para oferecer a ele. Mal sabia que não conseguiria me despedir de Almir.
Ao chegar ao cemitério, vários seguranças vieram ao meu encontro. Diziam: ‘Ele está aqui’. O local estava lotado. Tinha muita gente. Não estranhei. Almir era uma pessoa muito querida pelos artistas. No caminho até o velório, fiquei procurando alguns outros músicos que, como eu, queriam se despedir. Não encontrei nenhum. 
Quando entrei no velório, uma mulher loira veio em minha direção. Ela chorava muito e me abraçou. Disse que gostava muito de mim, de me ouvir cantar Ave Maria. Comecei a ficar encucada. Não reconheci a mulher, e eu sabia quem era a companheira de Almir. Ao me aproximar do caixão, vi que o falecido não era o Almir. Era outra pessoa.
Algumas mulheres vieram buscar os lírios que levara e começaram a jogar as flores em cima do morto – que, até então, não sabia quem era. O constrangimento só aumentava. Dizia para mim mesma: ‘Meu Deus, vim para o funeral errado’. Comecei a rezar uma ave-maria totalmente desconcentrada.
Olhava para o morto e pensava que não podia ser o Almir, que era mais jovem. Algumas ideias sem sentido começaram a surgir em minha cabeça, na tentativa de explicar o que estava acontecendo. Pensava: ‘Almir morreu com um tiro. Será que quem morre de tiro envelhece, e, por isso, não reconhecia o falecido?’.

De repente, surge um colega no meio da multidão, com quem tinha trabalhado havia pouco tempo. Ele dizia meu nome alto. Aí me dei conta de quem era o velório: de um artista também, do qual gosto muito. Aí tudo fez sentido.

Reconheci quem era a mulher que veio falar comigo logo que entrei na capela. Entendi por que os seguranças vieram logo me buscar. Na certa, outros artistas já tinham aparecido, e eles só repetiram o procedimento e me encaminharam para o mesmo local.

Apesar da confusão, gostei de ter ido. Aquela pessoa que tinha falecido era muito querida também. Fiquei feliz em ter enviado meus lírios para o Almir daquela maneira. Pensei que, se aquilo fosse um filme, o título seria: ‘Almir, recebe os lírios de D...!’.
Por causa do compromisso em São Paulo, saí da capela e fui direto para o aeroporto. Não pude ver o Almir. Quando entrei no carro, por mais drástica que a experiência tivesse sido, não pude conter uma crise de riso. Nunca mais fui a um velório sem ter certeza do local da cerimônia".
Revista Época 

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