10/05/2013

Eric Hobsbawm, o marxista saudoso da cultura burguesa


VERSÁTIL O historiador Eric Hobsbawm nos  anos 2000, em fotomontagem inspirada em Andy Warhol. Ele foi marxista  e saudosista (Foto: Divulgação)Quando o historiador britânico Eric Hobsbawm morreu de pneumonia, em 1º de outubro de 2012, aos 95 anos, consagrado e cercado por mulher e três filhos, não demonstrava sossego nem resignação. Ainda fazia planos de publicar novos livros. Ocupava-se, entre outros assuntos, do futuro da arte e da cultura no século XXI. Não se conformava com a decadência que as artes plásticas e a literatura experimentaram na era do consumo de massa e se dizia perplexo com a consolidação da internet. Ainda assim, esforçava-se para entender o que acontecera com tudo que aprendera a amar: o jazz, a ópera, os festivais literários, o futebol e o ideal de revolução preconizado pelos pensadores marxistas, seus mestres.

Foi misturando pessimismo crítico e esperança humanista que ele concluiu aquela que viria a ser sua obra póstuma, Tempos fraturados – Cultura e sociedade no século XX (Companhia das Letras, 344 páginas, R$ 39,50; e-book: R$ 27,50), lançada em março no Reino Unido e nesta semana no Brasil. A coletânea de 22 textos, entre ensaios, conferências e artigos escritos entre 1964 e 2012, trata da relação entre arte e política no século XX e seus efeitos sobre o novo milênio.

Tempos fraturados (Foto: Divulgação)
Hobsbawm nunca atuou como crítico de arte. Tratou do assunto de modo esparso, em obras como Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz, de 2005. Nela, demonstrou que os jazzistas americanos ajudaram, com seu talento, a forjar a cultura de massa mais criativa do século XX. Ele ampliou o escopo da análise em Tempos fraturados, para examinar o destino da música erudita, das artes visuais, da arquitetura, da literatura e do cinema. Seu argumento central é que a cultura burguesa, mantida por uma elite progressista que defendia o progresso e a educação pela arte e pela ciência, acabara com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Esse tipo de cultura, segundo ele, não resistiu à evolução da ciência e da tecnologia – “que transformou antigas maneiras de ganhar a vida antes de destruí-las” –, à sociedade de consumo de massa, impulsionada pela pujança econômica ocidental, e à inclusão das massas na cena política. A segunda metade do séulo XX viu nascer a “cultura do homem comum”. Ela culmina com o cinema, arte propagadora da hegemonia da cultura americana, criativa e corruptora. A televisão e os computadores ajudaram a gerar um fluxo inédito de informação, símbolos e crenças.
Em tal cenário, afirma Hobsbawm, a arte, como parâmetro de valores edificantes, cedeu lugar à pura diversão. A pintura foi ofuscada pelos painéis em silkscreen de Andy Warhol e pelos tubarões em formol de Demien Hirst. Sai de cena a sátira demolidora do jornalista e crítico austríaco Karl Kraus – que ele aprendera a ler ainda menino – para dar lugar a ídolos pop como Bono. O intelectual público, nutrido no engajamento político das guerras do século XX, foi substituído pelo astro de rock. “Numa sociedade de incessante entretenimento de massa, os ativistas agora acham os intelectuais menos úteis como fonte de inspiração do que roqueiros e astros de cinema mundialmente famosos”, afirma no ensaio “Os intelectuais: papel, função e paradoxo”, de 2011. “Os filósofos não têm condições de competir, a não ser que se reclassifiquem como a nova figura do novo mundo do espetáculo midiático – a ‘celebridade’.” Hobsbawm prevê que a situação mudará quando o “ruído universal de autoexpressão doFacebook e os ideais igualitários da internet produzirem seu pleno efeito político”. Viveremos, diz, um “dilúvio criativo”, que inundará o globo de imagens, sons e palavras com que ainda não sabemos lidar, mas que “se tornará incontrolável tanto no espaço como no ciberespaço”.

Hobsbawm nasceu em 1917, em Alexandria, quando o Egito fazia parte do Império Britânico, numa família judia de classe média baixa. Sua língua materna foi o alemão. Cresceu em Viena, onde vivenciou o final da efervescência cultural que a capital do império austro-húngaro exibira durante a belle époque. Formou-se em Berlim, durante a República de Weimar. Exilou-se em Londres em 1933, quando Hitler subiu ao poder. Sob a proteção da monarquia britânica, conseguiu ter sucesso nas carreiras de militante stalinista e professor universitário. Nunca renegou o marxismo, mesmo quando isso se tornou uma espécie de exigência moral, depois da queda do Muro de Berlim, em 1989. “Sua contribuição mais original foi enquadrar o marxismo ao mundo pós-Marx”, afirma o historiador Nicolau Sevcenko, professor da Universidade Harvard. “Ele incorporou o desenvolvimento tecnológico, o processo de descolonização, a rebelião dos marginalizados e a irrupção dos meios de comunicação.” Sevcenko acredita que, assim, superou os modelos mecanicistas herdados do marxismo.

Em seu último trabalho, Tempos fraturados, Hobsbawm revela-se uma figura paradoxal: o revolucionário comunista, saudoso da “alta cultura” burguesa, surgida em Viena da peculiar associação entre mecenas judeus e burocratas monarquistas, durante o Império Habsburgo, derrubado em 1914. “Ele sentia saudade da sofisticação de uma Europa que ele conheceu e não voltará”, diz o historiador Boris Fausto. “Viena foi um reino encantado para ele. Não combina com o integrante do Partido Comunista que ele foi, mas a idade traz tons inesperados.”

Ele sentia saudade
da sofisticação de uma
Europa que não voltará.
Viena foi seu reino encantado  
Hobsbawm foi, para emprestar termos que deram título a seus livros, um dos raros representantes da “era dos impérios” a ter atravessado o “breve século XX” e testemunhado o triunfo avassalador da sociedade da informação. Ele herdou uma visão de mundo – o iluminismo de esquerda – que o século XX praticamente destruiu. Isso explica, em larga medida, seu mau humor e seu desencanto dos últimos anos. Eles se manifestavam, sob o verniz da educação, nas conversas com colegas e jornalistas. No fim da carreira, ganhou fama como o homem que encurtou o século XX. Isso, antes mesmo de o século ter acabado oficialmente. Criou o atalho no livro Era dos extremos – O breve século XX (1914-1991), de 1994. Ali, afirmou que o século XX foi atropelado por duas guerras mundiais, pela ascensão do fascismo e do comunismo e pela consolidação do império americano. Esse século “catastrófico” – prensado entre o peso do passado e a sombra do futuro – durou para Hobsbawm apenas 75 anos. Desmoronou com a queda do Muro de Berlim. A solução arbitrária de decretar o final de um período histórico conquistou fãs, virou moda e converteu Hobs­bawm em algo que detestava: um astro pop. “Ele não podia andar pelas ruas de Paraty”, diz a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, que o acompanhou na primeira Flip, em 2003. “Ele não conseguia passear tranquilo sem que um fã pedisse autógrafo ou o parasse para uma foto. Brinquei com ele e lhe disse: ‘Professor, como o senhor se sente agora que é um ‘Mick Jagger da cultura?’ Ao que ele me respondeu, também brincando: ‘Você sabe, Lili, quando um velho marxista como eu é comparado a um astro do rock, algo deve estar muito errado’.” O presente parecia errado para alguém que se dizia especialista em passado.

Mesmo angustiado com o futuro de um tipo de cultura que o formara, o revolucionário saudoso, marxista, aristocrático, profeta e ao mesmo tempo celebridade pop despediu-se torcendo pelas mudanças da história – que, ele sabia, jamais deixaram de ocorrer, sempre em direções inesperadas. 

De Karl Kraus a Bono (Foto: Imagno/Getty Images e Peter Still/Redferns)

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